quarta-feira, 25 de maio de 2011

a poesia feita palavra

Diria que na beleza que num poema se substancia transparece a marca do divino. Isto só bastaria para que visse no milagre da linguagem (desde o nível micro do fonema ao nível macro do texto no contexto que cria) a sua essência sagrada, incólume a toda a ordem de sacrilégios a que se encontra exposta. 

Quando digo «poema» quero dizer a própria poesia (um outro nome para a beleza?) feita palavra, poesia que do mesmo modo  se pode fazer água, terra, fogo, ar, tudo o que, na sua beleza, O revela e manifesta.

Comungo com Traherne da visão à luz da qual é absurdo, se não mesmo perverso, condenar, em nome de uma religião, um mundo onde uma tal beleza se manifesta, considerando-o vão ou ilusório. Para evitar  controvérsias, Traherne apressa-se a opor dois mundos, aquele que é obra humana e aquele que é obra divina; porém, ainda que o não explicite, a verdade é que, numa outra «meditação»,  desfaz esta dualidade com a intuição da suplementaridade que os pode  harmoniosamente ligar. Assim concebe a criação humana como oferta que Lhe será grata, sendo sempre a Sua própria criação, porém acrescida de algo mais, porventura a Seus olhos mais importante, como fruto de um sentir singular, único, irrepetível. E não pode um tal sentir irromper tanto da alegria na sua fruição, como da tristeza ante obstáculos dela impeditivos?  Não Lhe será do mesmo modo grata a oferenda?

É já um lugar comum dizer que a ausência, manifestando-se como falta, é a forma mais intensa pela qual a presença se dá a sentir. Mas, que seja lugar comum não lhe tira a profunda e intrínseca verdade. Não basta, porém, acreditar que há algures um poço - mais propriamente, água - , para que se torne belo o deserto mais árido (estou, naturalmente, a evocar o Principezinho). Diria que o que basta é que se tenha, ainda que uma vez só, ao longo da caminhada, bebido dessa água. Quando o esgotamento é tal que nem mesmo a sede subsiste, nem por isso nos abandona a certeza de que está connosco a fonte, como diz a letra de um cântico que seria prestimoso em tais momentos, se força ou vontade houvesse para o cantar, mesmo em silêncio.