os livros que se lêem «muito bem» e os que se põem de lado
Há livros que, por qualquer razão, adquirimos, mas que, lidas as primeiras páginas, pomos de lado e não lemos mais. Outros há que nos despertam algum interesse e lemos até ao fim, mas depois arrumamo-los na prateleira para lhes não pegarmos mais, esgotáveis que são à primeira leitura. Ainda há aqueles de que lemos umas páginas, aqui e ali, e ficam à mão para os retomarmos mais tarde. Finalmente há os especiais, os que levariamos para a ilha deserta onde houvessemos de passar o resto dos nossos dias, na certeza de que nunca chegariamos ao fundo do seu essencial mistério. Estes, nunca os pomos de parte, de algum modo passam a fazer parte de nós.
Derrida disse numa entrevista que não foram muitos os livros que leu (não vou discutir o valor de verdade da proposição), mas que os que leu, leu-os «muito bem» . O que é «ler muito bem» um livro? Diria que é reconhecê-lo como especial e, como tal, olhar o seu intrínseco mistério, fruir, no espanto (wonder), a sua inexauribilidade, é sentir na pele o toque inconfundível da compreensão, em si mesma inalcançável.
Será que podemos extrapolar dos livros para as pessoas? Posso, na verdade, olhar o "outro" como um livro que me motiva - ou não - à sua leitura, havendo, entre «ler bem» e não ler, todo um vasto leque de possibilidades. Quando, por sinais vários, o "outro" se me manifesta como "especial", logo deixa de ser uma mera instância da "alteridade" abstracta, para se tornar o "tu" de uma relação que surge por via daquele mistério que, se a faz surgir, também dela advém. É ainda Derrida que me propicia este olhar no subtítulo de Béliers (de que já aqui falei por ver nele substanciado o tema da "tríade" que tem centrado estas minhas digressões). «Ler bem» não é chegar ao fundo do que não o tem (não há fundo para o que é infinito).
Tudo isto parece límpido e a vida, encarada nesta perspectiva, torna-se uma viagem iniciática no mistério de si mesma. Tomando como seu rumo e destino o aperfeiçoamento próprio, tudo passa a ser visto como inerente à aprendizagem. Que dizer, então, quando se não é para o "outro" um livro especial, antes um daqueles que se esgotam na primeira leitura ou daqueles de que se lêem as primeiras páginas e, não suscitando interesse, se remetem para o sótão, à falta de espaço nas estantes reservadas aos que se privilegiam?
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