sábado, 18 de dezembro de 2010

«o azul que do céu se desprende»

Mais uns dias passaram sem que deles ficasse um pensamento escrevível a assinalar um pequenino avanço que fosse neste troço mais penoso do caminho. Há sempre uma encosta voltada a norte onde o sol não bate... Uma «palavra de profecia» anuncia-me que pela Quaresma a terei contornado e o sol nascente inundará de luz a paisagem. Anuncia-me também que o que vier será bom, «como melhor não há». Responderá a este anseio, tão vago e indistinto e todavia tão poderoso que torna temível a aproximação do que quer que substancie aos meus olhos um objecto que não lhe posso sequer imaginar sem que logo se desvaneça o anseio, que de si mesmo se nutre. E, no entanto, desejo o que, sem que saiba o que seja, me é assim prometido.

A consciência da mudança «que não se muda já como soía» não tem necessariamente de trazer consigo a nostalgia de um Verão sem retorno. "Nostalgia" parece-me o termo mais adequado pois que, a maior parte das vezes, o Verão nada trouxe que deixasse saudades e o que se lamenta é não se o ter  ainda adiante, prolongando-se indefinidamente. Uma alternativa a esta visão e às consequências desastrosas que traz para a vida é a de buscar a beleza inerente a cada estação, descobrindo que o Outono pode ser mais glorioso do que a Primavera e o Inverno mais promissor do que o Verão.

Bem mais poderosa, no entanto, me parece ser a alegoria da viagem que nos faz peregrinos: «para casa do Pai», «para terras de além», «de claridade em claridade», prosseguindo sempre. A cada um de nós pertence perspectivar «o fim da viagem» («se é que o tem», cito.) Neste plano, «da acção», mas também «da escrita», apraz-me a imagem do caminho da montanha, em ciclos em torno de um eixo vertical invisível que passa pelo cume e o prolonga céus adentro. O caminhante sabe que não há retorno, mas também sabe que, se no plano físico os ciclos se estreitam, na mesma proporção se alargam nos outros planos não menos «reais» da sua existência.
Sabe que não é bom parar à beira do caminho na contemplação do vale que ficou para trás ou no temor paralisante do que do adiante possa advir.

A alegria de avistar o "outro" no caminho do cume é tão grande quanto a tristeza ante a desistência de cada um daqueles que, durante algum tempo, o acompanharam, ainda que de costas, cobiçando a companhia dos que, no plano natural da viagem, trazem, ainda viçosas, braçadas de flores da encosta voltada a sul. Deixam-se, então, ficar, caída a noite, esperando os que vão chegando. Porém, em breve murcham e secam as flores que lhes arrancam dos braços. 

Avistei alguns destes quando eu mesma ali cheguei e aos que se aproximaram mostrei-lhes as minhas mãos vazias. É que, ainda que nem todos as ouçam, as flores perguntam sempre «Soll ich zum welken gebrochen sein?». Mesmo que, como o poeta, as arrancasse «com todas as suas mais pequeninas raízes», outro seria o solo para onde as levasse. Além disso, anima-me esta certeza de que outras encontrarei de uma muito maior beleza e que sobre «os bosques verdes / de musgos sombrios» da encosta virada a norte «cai em flocos» «o azul que do céu se desprende», agora como «naquele tempo».

(A interpretação que a minha amiga Celeste faz do poema belíssimo que cito e reporto suscita-me de algum modo a apropriação que faço (alterando os tempos verbais como o itálico o assinala) no trazê-lo a este contexto, em que reverbera um acorde do epigrama de Silesius, que, no contraste, paradoxalmente se esvazia para que o encha a «sobrevida» que do agora lhe advém:
«Der Himmel senket sich / er kombt und wird zur Erden:
Wann steigt die Erd' empor / und wird zum Himmel werden?»)
Peço à minha amiga que deixe aqui um comentário a este post dando conta da lindíssima aula que este poema motivou.)