terça-feira, 12 de julho de 2011

anjos e avatares

Ante a hipótese de que a destinatária das Centúrias fosse, como se supõe, Susanna Hopton, procurei encontrar nas suas Meditações e Devoções, se não alusões e referências, pelo menos retomas deste ou daquele motivo ou tema, desta ou daquela palavra de que Thomas Traherne faz um uso peculiar e que nos chama a atenção seja pela singularidade, seja pela frequência de ocorrência. Nada encontrei que me fizesse pensar que ele - ou o seu livro - tenha sido para ela especial assim o deixando perceber. O que S.H. escreve nunca poderia ser tomado como a continuação (nas páginas deixadas em branco) do livro que ele devolve, escrito, àquela que lho ofereceu e a quem o dedica na quadra introdutória. Poder-se-ia mesmo dizer que, se é a destinatária deste livro, não só não nos dá quaisquer mostras de agrado, como completamente o ignora. Na verdade, o pouco que se sabe ter dito a  respeito de T.T. não lhe é muito abonatório, nomeadamente apontando que falava demais, sem ter consciência de se tornar cansativo para o interlocutor desprevenido de quem se apoderasse. 

Talvez importe pouco que tenha existido na vida dita real aquela que inquestionavelmente existe na escrita de Traherne dela fazendo parte integrante. Muito do encanto e singularidade do seu registo, como o apontam alguns, advém-lhe do facto de ser dirigida, não ao público em geral, mas a alguém em particular, alguém que lhe merece um imenso apreço, se não mesmo - ou também -  o mais puro e profundo amor. O âmbito da palavra «love» na língua inglesa é de tal maneira alargado que pode ser usada para todo o modo de afeição, sendo por isso elevadíssima a frequência com que T.T. dela faz uso. Que possa expressá-la deixando indecidível a sua natureza só pode ser uma coisa muito feliz. 

Estas considerações levam-me de volta aos anjos enviados quando se pensa escrevendo, subsistindo a escrita e, com ela, tais anjos. Gostei do filme Avatar (abstraindo da fórmula exausta do enredo) muito especialmente por me parecer ver encenada, na sua beleza, a realidade da escrita. Ao ler as Centúrias não encontro T.T. e a sua destinatária, mas o que poderia olhar como os seus "avatares", porém da natureza dos anjos e num mundo onde estes não sabem bem  (convoco Rilke, claro) se se movem entre os que vivem ainda ou entre os que já morreram. Chamar-lhes sujeito da enunciação e enunciatária é não querer ver, sob a opacidade destes termos, a sua prodigiosa e proveitosa realidade.