quarta-feira, 26 de agosto de 2009

a rosa e a lagarta: a tentação da alegoria

1. Do rol de "áreas científicas" definidas no domínio das Letras, só a linguística me facultou a liberdade de saltar as vedações que demarcam territórios na ausência de fronteiras naturais a separá-los. Impondo-se partir de um modelo científico dentro da área para me poder "filiar" nela, encontrei o de M.A.K. Halliday, que desde logo me atraiu com a revelação das três "componentes semânticas", com base nas quais desenvolveu a sua teoria. A base pareceu-me marcadamente filosófica, embora o autor, voltado para a sociolinguística, passe ao lado do que é para mim um filão preciosíssimo. Foi gradualmente que fui tomando consciência da sua fecundidade e o modelo, a teoria das verbalizações ("wordings"), veio a revelar-se um instrumento de análise tão flexível e maleável quanto o próprio olhar.

2. As dimensões semânticas intrínsecas ao discurso são também intrínsecas à vida, ou antes, à experiência que fazemos dela a cada instante. Porém, na proeminência que damos à "representacional", manifesta na própria estrutura gramatical (e.g.: a faz b ou b acontece; a conhece b; a é b.) , não atendemos à interpessoal e textual, presentes em todo o acto de enunciação.

3. Face a um poema como "The sick rose" de William Blake, dado como exemplo por excelência de um símbolo perfeito, é sabido que qualquer tentativa de alegorização ou fixação de um sentido o destrói enquanto tal, inclusive a que faço no entendimento de que, para além de todos os sentidos, o poema diz isto mesmo (facilmente se fará a extrapolação da rosa e da lagarta para o poema e para aquele que, no furor da análise, fixando-lhe um sentido, o mina e destrói). Na consciência disto, resta a esperança de que a glosa, na sua assumida humildade, não lese o símbolo, profando a sacralidade do poema (o texto poético é gémeo do sagrado) ou a não tivesse de alguma forma legitimado (aplicada às Sagradas Escrituras) a prática de milénios.

4. São desta natureza os "Poemas do Viandante": em si mesmo símbolos, no desenvolvimento de um núcleo poético que se torna todo o poema. Antes de tentar qualquer glosa contemplo livremente, ingenuamente mesmo, as imagens que vejo configurarem-se-me diante dos olhos. Neste aspecto reading e scrying correspondem-se. Ao mesmo tempo sinto-me envolvida num misterioso acto de enunciação (para além de tudo o mais, é através de mim que o texto se torna, uma vez mais, discurso vivo). Mas, de onde irrompem estas imagens? De onde o sopro, a respiração que as percorre, as anima, as dá a ver? Se disser que irrompem do texto, das palavras, terei de ver nelas mais do que um mero suporte linguístico, mais do que já fui capaz de dizer da "dimensão textual", que, como o nome o indica, lhes é inerente. Não será ela precisamente a que nasce da relação que ela mesma cria, a relação em que mutuamente se implicam a ideacional e a interpessoal e em que ela mesma entra, na trindade em que se unificam em toda a verbalização ("wording")?