quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Chegar ao "em si" (tentativa inglória de reflexão)

Contava o meu pai ter lido num conto de H.G.Wells algo assim (sendo dominantemente ideacional o que me ficou na memória, tenho de, à sua volta, tecer o resto): a uma velocidade que transcende a da luz, rumei até aos confins do universo e eis que assomo de um grão de areia da praia de que parti.
Nunca quis ler o conto temendo que a narrativa viesse destruir este núcleo poético que diz um mistério, como tal, só metaforicamente dizível. Só através da metáfora é possível uma aproximação do "em si" das coisas (pergunto-me se o mesmo não se poderá dizer da aproximação do em si do eu e do em Si de Deus). As descobertas da microfísica vieram aumentar a perplexidade que faz do espanto ("wonder)" a atitude mais sensata da ciência, de novo tão próxima do que de mais essencial há na religião (em todas as religiões), ou seja, o "místico" no sentido etimológico dos termo, de que o silêncio é a mais pura expressão (um silêncio que se faz "sopro" e "fecunda a palavra que o gera", numa verbalização feliz de que me aproprio para dizer o mistério que define o poético - recolhi-a da Introdução à tradução de De Visione Dei).
"Toda a ciência transcendendo" diz o verso que se repete em cada quadra de um dos mais conhecidos poemas de S. João da Cruz. O autor anónimo de The Cloud of Unknowing, para porventura dizer o mesmo, forma o derivado "un-know" (à semelhança de "un-do") como se fosse possível "des-saber" - voltar a uma fase pré-cognitiva em que, indistinto do mundo (ainda não seu sujeito), o eu, o mundo e Deus seriam um (uma unidade trina). Tal é a visão inerente a essa primeira fase da existência que Thomas Traherne recorda como tal e como fruída ainda.
(Coloquei no outro blogue dois passos ilustrativos)

Do ponto de vista da linguagem, estruturante do pensamento tanto quando por ele estruturada) direi ser a componente ideacional que se torna imperioso transcender ou anular. Para chegar ao "além de Deus " ("über Gott", para Silesius), para chegar ao "em Si" de Deus, é preciso desconcebê-l'O, inclusivamente enquanto Inconcebível, Incognoscível (como paradoxalmente é, em última análise, concebido). Não se poderá dizer o mesmo em relação a chegar à "coisa em si"? (E ao eu em si?) Uma única via se abre a esta ordem de anseio, via que é o próprio ansiar em si mesmo, sem âmbito ou objecto que o delimite (a não ser metaforicamente, conforme o expressam alguns dos salmos mais belos). Tal acontece no momento - de suprema graça - em que em si mesmo se realiza na forma do mais são, inteiro e sagrado amor (é significativo que os adjectivos hale, whole, holy partilhem o mesmo étimo).
S. Jerónimo não foi infeliz na tradução por que optou para o termo grego "ágapé", que S. Paulo escolheu no alargamento que faz ao "próximo" da dinâmica deste amor (não posso deixar de relacionar 1 Cor 13 com Mat 22: 37-40). Diria que, enquanto o termo de S. Paulo está direccionado para o próximo, a tradução latina redirecciona-a para Deus, dando relevo à graça divina, ao dom gratuito que Deus faz de Si mesmo, sendo Ele o próprio amor: do étimo grego "kharis" (graça) S. Jerónimo forma a palavra latina "charitas", erradamente entendida como derivação do adjectivo latino "carus" (note-se a diferença na grafia), com a decorrente perda semântica, desastrosa tendo em conta o desfasamento entre o que o termo designa e o que , sob essa designação, se exalta.

(continuarei)