domingo, 5 de julho de 2009

"O que sobrevém"

A. Silesius suscita a E.Spoerri (Cherubinischer Wandersmann als Kunstwerk, trad. C.W. como obra de arte) esta observação: "O místico obriga a linguagem (a dizer) o que ele próprio já não consegue pensar ("Der Mystiker zwingt also der Sprache ab, was er sich selber nicht mehr denken kann.") Acrescenta depois: "brinca com ela e - em parte por ela seduzido, em parte seduzindo-a - encontra as formulações mais arrojadas e argutas." (...er spielt mit ihr, und - halb von ihr verführt, halb sie verführend - findet er die kühnsten und geschliffensten Formulierungen").

É, portanto, também de "arte" que se trata. Esquivo-me sempre a usar esta palavra que está no étimo tanto de artífice como de artista (o que não surpreende sendo que ars traduz techne). Parece claro: enquanto um "forja", o outro "cria". Mas, se "criar", necessariamente a partir de uma matéria-prima, envolve, por isso mesmo, "forjar", então algo sobrevém que faz a diferença. (Na dinâmica trinitária que vejo na essência do que é para mim a "verdadeira arte", o que sobrevém é ao mesmo tempo aquilo que a gera nela intervindo, nisto residindo o mistério).

Glosando uma citação de Thomas Merton ("O poeta entra em si mesmo para criar. O contemplativo entra em Deus para ser criado"), o Viandante dá-me a ver como "artista criador" o "poeta místico" ("místico", para mim, envolve "contemplativo", sem se lhe reduzir) que ele mesmo é.
Cito: "Se o caminho para entrar em Deus for o de entrar em si mesmo então o acto de criar e o de ser criado confundem-se e o artista criador não é mais do que criação, imagem e semelhança daquele que o cria. E aqui podemos surpreender um sentido novo da mimésis grega (...) o artista cria à imagem e semelhança do Criador, desse Criador que continuamente me cria".
Nesta perspectiva, a de que "imitando ritualmente o gesto criador de Deus o artista O celebra e O cultua", o "acto criador" será um "acto religioso" por excelência, e incontestável a asserção de que "toda a arte pertence ao domínio do sagrado, tenha ou não o artista consciência disso".

Mas, para que "entrar em si mesmo" e "entrar em Deus" sejam o mesmo caminho é preciso entender "si mesmo" como o "homem interior" de S. Paulo, ou como o "eu" no momento em que responde ao chamamento: entra em si porque é chamado a entrar em quem o chama.
Mas entrar em si mesmo será o caminho ou um caminho?
Em face deste texto, deste poema - "Rasto húmido" ou "A rosa" , belíssimos e por excelência "do domínio do sagrado", são para mim orações - vejo diante de mim um caminho . Aonde me leva? A mim mesma? Ou ao "eu" a quem dou a voz silenciosa que escuto no acto em que leio? Ou Àquele que me chama por esta via?
Isto conduz-me de novo à dinâmica trinitária intrínseca ao mistério da realidade e da linguagem.