quarta-feira, 17 de junho de 2009

"a realidade que se dá"

"De um momento para outro, tudo rui e a realidade mostra-se totalmente outra, surpreendente". Estas palavras dizem, por um lado, a inutilidade e vacuidade das nossas conjecturas e antecipações, tão efabuladas como as histórias de nós mesmos, que nos ocupamos a construir e desconstruir, na consciência de que mais não são do que isso mesmo: construções, efabulações; por outro lado dizem um como que deslumbrado espanto ante essa realidade que se dá, "totalmente outra, surpreendente".
No caso da "fábula mística" não se tratará de falar do inefável, narrar o inenarrável, conceber o inconcebível, como os místicos o pretendem, mas de dar conta de um tal deslumbramento. Só a poesia, porém, o pode fazer, porque não narra, antes diz, e dizendo dá a ver (David Bohm observa que o verbo inglês say é cognato de see, significando etimologicamente "dar a ver"). Não é apenas a visão que é envolvida, mas "todos os sentidos num só confundidos" (sempre achei feliz esta expressão de Garrett ). Místico é todo o poema que, deste modo, nos coloca em face dessa "realidade outra", não construída, não efabulada, mas dada a ver. São místicos os "poemas do viandante", dádiva retribuída a quem nela Se dá. Retribuída num transbordante excesso.
E , se, supreendentemente, deste transbordar Ele enche o meu lago, poderia eu ter esperado ou desejado o que fosse que a tal se comparasse? Não se tratará de nada esperar, nada desejar, mas porventura de orientar uma esperança e um desejo sem objecto para aquilo que for enviado. Que melhor preparação para o receber? "Desire" é para Traherne este desejo sem âmbito que o delimite, sem objecto, portanto, diferente do banal "wish", como "Felicity" infinitamente transcende a vulgar "happiness".