terça-feira, 4 de agosto de 2009

Ainda e sempre Maria e Marta

Diria que se nasce já com uma inclinação (ou predisposição) para a contemplação, que a vida pode favorecer ou contrariar. Traherne dá conta do seu caso na evocação da fase pré-verbal da sua existência (de que convenhamos ser muito raro persistir a memória)como uma propensão inata. É por lhe reconhecer fases que a vida se lhe afigura um percurso de e para algo de grande que o atrai e o faz prosseguir (no sentido etimológico do termo, não havendo retorno, mas avanço) na direcção dessa atracção.

Poder-se-ia perguntar hoje se esta propensão se poderia contar entre os traços caracteriológicos, como a introversão/ extroversão (e outros, também considerados em termos de aproximação de um ou de outro pólo, como seja a polaridade passivo/activo, estável/instável, teórico/prático, Vénus/Marte, primário/secundário, emotivo/não emotivo, afectivo/não afectivo). Diria não ser um traço de carácter, mas um dom, para aperfeiçoamento próprio, e um carisma, para aperfeiçoamento dos outros, uma vez colocado ao seu serviço. (Verbalizam-no os versos de um cântico de entrada: “Tu me chamaste pelo meu nome e eu Te respondo ‘estou aqui’”).

A máscara que o contemplativo pode ser tentado a usar é a que esconde o que pode passar paos olhos dos outros por preguiça ou por presunção. Maria nada esconde, responde espontaneamente a um impulso. Escolher a melhor parte é deixar-se servir também, que é o que Marta não faz. Angelus Silesius glosa o tema num epigrama:

Die Martha laufft und rennt, daß sie den Herren speise,
Maria sitzet still und hat doch solcher Weise
Das beste theil erwählt: sie speiset jhn allein,
Die aber findt auch sich von jhm gespeiset sein.


Tento uma tradução:

A Marta corre atarefada a servir o Senhor
Maria fica sentada e assim quedada
Escolheu a parte melhor: serve-o a Ele só,
Descobre porém que é por Ele servida também.

Um perigo espreita o contemplativo: perante ele mesmo pode sentir-se tentado a ver na diferença que o marca uma superioridade em relação aos outros, enquanto se defende de que lhe atribuam, não essa superioridade, que lhe não reconhecem, mas a presunção dela, de que não sente nem mesmo já a tentação. Cai assim numa forma mais subtil e insidiosa do orgulho de que, dê as voltas que der, nunca se consegue livrar. Só mesmo n’Ele pode encontrar uma saída desta circularidade em que se vê fechado: “Eu nada posso, mas Tu tudo podes em mim”. Não está este abandono implicado à partida na oração contemplativa?