O Natal e a infância
Assinalei aqui o dia de Natal com músicas que marcaram natais de tempos que me parecem hoje não apenas distantes, mas de tal modo ligados a arquétipos que me pergunto se esta espécie de nota nostálgica que a sua evocação faz soar não tem realmente mais a ver com o arquétipo do que com as experiências efectivamente vividas.
Diria que, nessa infância que tornamos mágica - ou se nos torna mágica (de novo o "ergativo") -, correm já, ainda que subterraneamente, os "rios de mágoa" que nos tocam e em que por vezes nos deixamos submergir hoje, pressentidos, então, de uma forma vaga mas intensa (o que Malte descreve como "das Grosse" ou outros terrores que dariam pelo colectivo "das Ungeheuer") e que tendemos a diluir nos tons dourados com que pintamos o quadro dessa infância remota.
Já na maturidade, quando me deu uma espécie de impulso para pintar (sem ter conhecimento das técnicas da arte) tentei captar a ambiência da casa que guarda as memórias incoesas desse tempo, o 17 da Almirante Reis. Deixo aqui o pormenor de um espelho, aquele onde vi pela primeira vez a minha imagem e em que, até à última - quando aprendi as leis da reflexão -, resisti a ver apenas isso.
O prédio foi demolido, à excepção da fachada; restaurada, ainda que seja inteiramente novo o espaço que a sustenta,nem por isso deixará de sustentar para mim, no terceiro andar, o que foi o meu primeiro mundo. A esse mundo pertencerá sempre o Natal, mesmo depois de Jesus ter deixado de ser o Menino que me deixava presentes no sapatinho. Recordo o abalo ante a revelação de que só indirectamente vinham d'Ele - e pergunto-me como é possível lembrar-me também de "fazer de conta" que não percebia que tudo o que me diziam eram formas de tentar salvar o que pensavam ter destruído em mim. Como dizer-lhes que chorava apenas uma imagem quebrada, como falar-lhes da absoluta indestrutibilidade de qualquer coisa que, no mais fundo de mim, me dizia "Estou sempre contigo"? A maior complexidade (do que tentei verbalizar nestes termos hoje) concentra-se na maior simplicidade, como tal compreendida inteira ("as a whole") pela criança na fase em que progressivamente vai perdendo a capacidade dessa compreensão (Traherne fala disto em "Dumnesse")
Em tempos relativamente recentes, fui convidada a traduzir do francês um livro de poemas de um poeta para mim inteiramente desconhecido, Jean Albert Guénégan. Qual não foi o meu assombro, ao deparar com um poema que começava assim: " De ton errance Avenida Almirante Reis / naît et se ride la question de l'âme. / La solitude pour toute fidélité / tes jours sont un labour de soupir / où l'enfance se couche, (...)". Apenas pude saber que o seu autor escreveu aqueles escassos textos numa visita a Portugal... Na sua rápida passagem por Lisboa, o que é que o tocou ali, onde nada parece haver a assinalar a quem venha tão de fora?
Diria que, nessa infância que tornamos mágica - ou se nos torna mágica (de novo o "ergativo") -, correm já, ainda que subterraneamente, os "rios de mágoa" que nos tocam e em que por vezes nos deixamos submergir hoje, pressentidos, então, de uma forma vaga mas intensa (o que Malte descreve como "das Grosse" ou outros terrores que dariam pelo colectivo "das Ungeheuer") e que tendemos a diluir nos tons dourados com que pintamos o quadro dessa infância remota.
Já na maturidade, quando me deu uma espécie de impulso para pintar (sem ter conhecimento das técnicas da arte) tentei captar a ambiência da casa que guarda as memórias incoesas desse tempo, o 17 da Almirante Reis. Deixo aqui o pormenor de um espelho, aquele onde vi pela primeira vez a minha imagem e em que, até à última - quando aprendi as leis da reflexão -, resisti a ver apenas isso.
O prédio foi demolido, à excepção da fachada; restaurada, ainda que seja inteiramente novo o espaço que a sustenta,nem por isso deixará de sustentar para mim, no terceiro andar, o que foi o meu primeiro mundo. A esse mundo pertencerá sempre o Natal, mesmo depois de Jesus ter deixado de ser o Menino que me deixava presentes no sapatinho. Recordo o abalo ante a revelação de que só indirectamente vinham d'Ele - e pergunto-me como é possível lembrar-me também de "fazer de conta" que não percebia que tudo o que me diziam eram formas de tentar salvar o que pensavam ter destruído em mim. Como dizer-lhes que chorava apenas uma imagem quebrada, como falar-lhes da absoluta indestrutibilidade de qualquer coisa que, no mais fundo de mim, me dizia "Estou sempre contigo"? A maior complexidade (do que tentei verbalizar nestes termos hoje) concentra-se na maior simplicidade, como tal compreendida inteira ("as a whole") pela criança na fase em que progressivamente vai perdendo a capacidade dessa compreensão (Traherne fala disto em "Dumnesse")
Em tempos relativamente recentes, fui convidada a traduzir do francês um livro de poemas de um poeta para mim inteiramente desconhecido, Jean Albert Guénégan. Qual não foi o meu assombro, ao deparar com um poema que começava assim: " De ton errance Avenida Almirante Reis / naît et se ride la question de l'âme. / La solitude pour toute fidélité / tes jours sont un labour de soupir / où l'enfance se couche, (...)". Apenas pude saber que o seu autor escreveu aqueles escassos textos numa visita a Portugal... Na sua rápida passagem por Lisboa, o que é que o tocou ali, onde nada parece haver a assinalar a quem venha tão de fora?
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