terça-feira, 15 de dezembro de 2009

para "Um anjo perdido "

Reiterando o que já terei dito, os poemas do Viandante dizem, e, no dizer, constituem - mais do que replicam - "acontecimentos" da natureza daqueles que suscitam a R.M. a noção de "infinito singular", descrito como ruptura no tecido do ser (se, para David Bohm, o "ser", o que é, é o "holomovimento do implicar-explicar", esta ordem de acontecimentos sobrevém como que de fora do ser, como irrupção na "ordem explicada" do que nunca esteve na "ordem implicada").
Infinito é também cada um dos pólos entre os quais se move o anjo: "entre dois infinitos", o poema", assim enuncia Derrida a trindade dinâmica que é a essência da poesia.
Seria ingénuo identificar estes "infinitos" com o sujeito da enunciação e o seu enunciatário (e mais ainda com o autor e o seu destinatário/leitor). Na verdade, cada um deles é desde logo em si mesmo a tríade que consigo se contrói.

Ao ler cada um destes poemas, se é evidente que me não consigo "apagar" e ver o que fica, também não é menos evidente que, na presença do anjo, algo em mim muda e é sobretudo o que muda em mim que como que abre uma fissura na pele deste universo infinito nela impossivelmente fechado (estou a parafrasear Traherne quando o expressa assim: "a universe enclosed in skin"). Algo de semelhante acontecerá do lado da criação, do acto que faz surgir o poem. Tocar-se-ão esses universos no ponto em que os toca o anjo?

Apenas tento, uma vez mais, uma aproximação do que continuo a ansiar compreender: o que chamo a "dimensão interpessoal" na forma desta tríade geradora do "campo" em que se configura o que é dito no acto de se dizer.

É o poema, belíssimo, intitulado "Um anjo" que me tem movido a reflectir sobre o mistério de que se faz poderosíssimo símbolo. Imponho-me resistir à tentação de lhe apreender um sentido (entre uma inexaurível multiplicidade de sentidos possíveis), sob pena de o reduzir ao enigma que não é.

...

Deixei a página aberta todo este tempo de interrupção. Desisti de reservar tempo sem cortes a esta actividade de pensar escrevendo, sob pena de, na sua falta, perder de mim esta forma de reflexão (no duplo sentido do termo) que me é tão necessária quanto ao "eu" é necessário o "tu" e o anjo a ambos. "Anjo perdido / na sombra da tarde". Para ambos, "risco de terra / no silêncio do mar".

Liberto-me da metáfora na visualização da imagem pura: a "sombra da tarde" sobre o "silêncio do mar"... ao longe (a que distância?) um "risco de terra". Reflexo do "anjo" (não espelha o mar o céu?)? De um "anjo perdido"? Não, não este (outro há, sim, mas não este). Simplesmente "perdido na sombra", como o "risco de terra" (perdido) "no silêncio do mar". Uma orientação, um rumo, um traço, uma palavra. Anjo. Poema: entre dois infinitos (perdoe-me o Derrida esta inversão abusiva dos termos).

Não posso deixar de transcrever o poema (certa de que o deixou incólume na sua beleza esta sua refracção no "espelho da minha alma"):

"um anjo perdido
na sombra da tarde

risco de terra
no silêncio do mar".