segunda-feira, 17 de maio de 2010

"renovamento"

Afigura-se-me que é só face ao dogma que há lugar à heresia e a ciência (não falo da que é dom do Espírito Santo) tornou-se porventura a mais dogmática das religiões. Sem ser preciso olhar a História (onde em matéria de horrores a ciência e a religião não se distanciam muito), não faltam, mesmo à nossa volta, exemplos de fanatismo científico. Pergunto-me o que poderá levar alguém a querer crer à viva força que o seu "eu" - e o dos outros - se reduza ao funcionamento do cérebro encerrado no exíguo espaço da caixa craniana. E, o que é pior, o que o poderá levar a tomar como missão espalhar tal fé. Seria elucidativo verificar quantas vezes as palavras "inside your brain / skull / cranium" recorrem em I am a strange loop (num parágrafo de vinte linhas contei quatro).
A "ciência normal", tal como a "religião normal" (no caso da religião cristã, a Igreja instituída), cumprem o seu papel: em tempos de "crise" (epistemológica ou religiosa), uma e outra obstam a excessos. Sem o seu papel moderador, multiplicar-se-iam as "anomalias" e proliferariam as teorias explicativas conflituantes (ou não fosse uma teoria simplesmente um modo de olhar). É assim que a Igreja instituída acorre a apagar o fogo onde ele deflagra, hoje mais cautelosa, admitindo a hipótese de que o fogo deflagrado possa ser o do Espírito. Foi assim que João Paulo II acolheu o Renovamento Carismático. A sua demarcação relativamente ao congénere "pentecostal" (do lado dos "protestantes") parece-me elucidativa deste papel "normalizador" que a Igreja de Roma desde sempre se impôs.
Enfim, tomo "católico" no sentido etimológico do termo, contemplando o "Renovamento" todo aquele que, dentro ou fora da Igreja, for "tocado" pelo Espírito, que "renova em Si todas as coisas". É neste sentido que tomo "renovamento", que será "carismático" no sentido em que os dons (em benefício próprio) se tornam "carismas" (de "kharis", graça, recebida para benefício do "outro").
Curiosamente a primeira vez que em tal ouvi falar foi numa revista universitária alemã, em que procurava um artigo referente a Angelius Silesius. Muito mais tarde havia de conhecer a face popular que tomou entre nós o que, no seu auge, alguém comparou a um "vendaval".
Não é "mais um movimento da Igreja", mas também não é "a Igreja em movimento", como alguns o "qualificam".Direi que não é um movimento de massas, mas uma graça individual que se manifesta, sim, numa abertura ao outro. Claro que é o meu "modo de ver", um modo de ver que é, porém, aberto, talvez até demasiado, de onde por vezes poder parecer herético.
O papel normalizador da Igreja é, sem dúvida, imprescindível, ou não se conhecessem os excessos a que podem levar as euforias (seja de que natureza forem) sem o "discernimento do espírito". No século XVII na Inglaterra, algo de semelhante aconteceu, com excessos que suscitaram a desconfiança dos mais "avisados", por exemplo Thomas Traherne.
Romano Guardini previu (em meados do século passado) que a renovação teria lugar no indivíduo, na sua singularidade irrepetível e não generalizável. Acredito que assim está a acontecer. O "renovamento" acontece no mais fundo de cada um, que o vive como via que sempre adiante se lhe abre ("por desertos, por sóis, por noites escuras"). Que deslumbramento não será deparar-se-lhe nessa via quem, tocado pelo Espírito, se lhe afigure que avança na mesma direcção. Mais do que nunca se aplicarão as Suas palavras: "Onde estiverem dois ou três ...".