sexta-feira, 23 de abril de 2010

ainda o "outro"

É verdade que tendo a utilizar um segundo nível de linguagem na expressão do que a vida tem de mais complexo e que é a relação com o "outro" (na relação com nós mesmos e com o Outro não precisamos sequer de linguagem). Não falo da relação "trivial", antes da que surge como última etapa de um percurso que envolve passagens a níveis sucessivamente superiores, mas em que também o insucesso pode ocorrer.

Só quando enveredei por este rumo de reflexão é que, no horizonte longínquo, o "outro" se começou a delinear como tal, muito vagamente de início. Teria de ser um "outro" muito, muito, especial, e o seu mundo teria de ser do mesmo modo muito especial. Teria de ter uma "orientação do coração" especial também. Teria de se ter encontrado já consigo mesmo e com Deus. Teria de ter sentido que "só Deus basta", como no cântico de Teresa d'Ávila. Teria de ter entendido que a viagem não acaba com o "grande Verão" e não há que o querer "agarrar" em desespero. Teria de ter entrado Outono adentro maravilhado com o seu esplendor. Teria de saber encher-se da luz e do calor de alguns dias para fazer face à sombra e ao frio de outros. Teria de ter compreendido que "tocarem-se os olhos" não implica necessariamente encontrarem-se os olhares. Tudo isto se me veio a revelar com o tempo, no "desenho" da impossibilidade de sermos, já e ainda não, "como os anjos de Deus".
No entanto, a linha de reflexão que se me abria, a que a dissertação sobre Traherne e a sua destinatária davam consistência, reclamava-o como "premissa". Nesta base especulativa surgiu e foi-se precisando o "desenho" dessa tríade em que o Outro "fecunda" a relação de que nasce. Tudo isto no plano teórico, ainda que não deixasse de, através da "literatura", o "aplicar na prática". Assim foram surgindo paralelamente o "fio condutor" da minha escrita sobre Traherne e as "actas" do que foi a primeira etapa da subida da montanha. Se respondia ao "ide e anunciai", o motto era "acabara de descobrir nas palavras janelas de inúmeras paisagens".


Entretanto a relação com "Ele" passava a um nível paradoxalmente superior: superior porque inquestionavelmente avançava no seu aprofundamento, paradoxalmente porque (como no cântico) me envolvia a noite escura, a tempestade, o deserto. E, se a luz, a paz, a fonte continuavam comigo, não mais se manifestavam como tal. "Saber" que estavam em mim era já um segundo nível de conhecimento, digamos assim, sem base sensorial. Chamar-lhe-ia "noite escura dos sentidos" se me revisse no modo como dela fala S. João da Cruz, o que não acontece (nem poderia acontecer pois que o modo de olhar e sentir de um homem e de uma mulher são muito diferentes, o que não é senão maravilhoso).