sábado, 16 de julho de 2011

«assombração» de luz?

No fecho de The Death and Return of theAuthor, S. Burke (1992) vê a "questão do autor" como «uma assombração interminável», «uma presença inquieta que a teoria nem pode explicar, nem exorcizar». Será que a «questão» do autor só se coloca no caso da escrita dita "criativa" (também referida como literária ou poética)?  Em todo o texto, criativo ou não criativo (onde passa a fronteira?), há um sujeito enunciador.  Lícito me é, pois, perguntar se quem, nestes termos, dá mostras de desconforto ante o que chama «assombração», "presença inquieta" (ou inquietante?) a explicar ou exorcizar é o autor Burke ou o sujeito da enunciação deste (seu) texto, que se apresenta como seu autor?
Na escrita criativa, o autor-criador - enquanto "outro" -  é posto entre parêntesis pelo crítico do mesmo modo que o "Outro" o é pelo agnóstico. Por isso me parece haver aqui mais alguma coisa do que levar à prática o fecho do Trataktus (Wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen), ou não haveria azo a se falar de «assombração».

Devo admitir que, quando tal assombração é luminosa, não a conseguindo explicar, nem por isso a desejo exorcizar, antes a desejo convocar. Agrada-me a ficção em que entro no texto como numa casa em que, com a energia (emanada do que é em mim totalidade de corpo, alma e espírito) que lhe dispenso (anjo que lhe envio?), se manifesta a presença que a habita. Uma assombração de luz seria então a dos livros que levaria para a ilha deserta, uma luz que me devolve exponencialmente intensificada essa energia que lhe dou (esta perspectiva faz-me evocar a plantinha de T.T. que, em lugar de consumir os nutrientes da terra, lhos faculta).
Tal é, citando agora H.V., a «luz que emana do espírito que o corpo do livro suporta». Como «corpo», tais livros, continuarei a citar, «precisam de ser tacteados lenta e suavemente, precisam de ser tocados para se abrirem e deixarem ouvir a voz reservada que trazem dentro de si». Ler é, assim, «um corpo a corpo, um jogo em que as peles se tocam para os espíritos se fundirem», uma relação que, «presidida por esse estranho deus a que os gregos deram o nome de eros», reclama a «especial reverência com que um corpo se deve abrir a outro».

Passando da citação à paráfrase, posso dizer que assim me abro - e desejo abrir - a certos livros e assim certos livros se me abrem.  Direi, porém, que, tal como na unio mystica, a fusão dos espíritos não está nas nossas mãos, ainda que plenamente se abram para se darem, não acontecendo sem aquele fogo que torna trina a relação.