quinta-feira, 13 de outubro de 2011

a poeticidade (3)

Quando, na divulgação científica, se fala do que é o tempo, Santo Agostinho é quase sempre citado a ilustrar a reiteração de que «a ciência não nos pode dar respostas definitivas» a esse respeito. Esta asserção surge normalmente precedida pelo que a gramática chama um "adjunto de comentário" - «infelizmente» - que para mim muda imediatamente de sinal: «felizmente».
Tão essencial quanto para a Física a noção de tempo, será a de poeticidade para a teoria da literatura, que felizmente não nos pode dar resposta definitivas a seu respeito. Um mistério, diz Rilke, é por natureza misterioso, não porque esteja oculto: «das Geheimnis ist geheim, seinem Wesen nach, nicht aber weil es versteckt wäre». Por este mistério, enunciável na pergunta "o que é a poeticidade?", me deixo seduzir na «luta desigual» em que o penso, fascinada pela sua eterna vitória.

Se só me posso pronunciar sobre o poético do ponto de vista da recepção do poema em que sensivelmente se me manifesta (ou seja, na medida em que me toca, move, seduz, fascina), é difícil não ceder à tentação de me interrogar sobre o seu criador, indissociável da sua criação (processo e produto), um mistério que transcende a dinâmica de implicação mútua dos três "tempos" (meaning - wording - expressing)que M.A.K. Halliday distingue no processo da enunciação. Tanto o inglês "mean", como a sua tradução por "querer dizer" ou "significar" é manifestamente insuficiente para o «prévio do discurso", muito especialmente do discurso poético.O que há de misterioso neste primeiro "tempo" é claramente reconhecível no testemunho de Rilke relativamente à escrita de «A Primeira Elegia» a partir do primeiro verso escutado no vento: «Wer wenn ich schrie...». O mistério da criação poética não se circunscreve a este primeiro tempo, antes se alarga e envolve - se não a dirige e governa - toda a dinâmica da enunciação, inclusivamente no que diz respeito à expressão linguística, indissociável da verbalização no momento em que é crucial o som da palavra.