«a pura aceitação do provir»
Talvez haja de deixar os dedos correrem livremente pelo teclado, apagando as vezes que forem necessárias o que for escrevendo até que se faça a luz de que preciso para prosseguir, já que o nevoeiro que a noite trouxe não me permite ver claramente o caminho que adiante se me abre.
O Evangelho do dia de hoje é o do passo que refere o «pecado contra o Espírito Santo» e o aponta como o único que não tem perdão. Mas em que consiste? No contexto em causa parece ser o de, conscientemente e servindo tenebrosos intentos, dar a ver o Bem como mal. A catequese tradicional explica que consiste no «desespero da salvação», o que não deixa de ser tranquilizante, já que fica à partida salvaguardado o perdão para o que S. Paulo explicita como fazer o mal que se não quer e não fazer o bem que se quer ( "fazer" não exclui pensamentos e palavras, já que tudo é "acto"). A própria tomada de consciência que leva a este reconhecimento e a pena sentida serão já sinal desse mesmo perdão e bom é que assim seja, já que a catequese também adverte contra o perigo de um exame de consciência de tal modo escrupuloso que logre sempre discernir qualquer laivo de mal a macular a intenção mais pura, mal que decorre sempre do "eu" e dos seus desejos e medos.
Um dia, na consciência disto mesmo, pedi com fé: «Senhor, liberta-me de mim». E escutei, naquele "temor" que faz estremecer sem que nada tenha de "medo", o que a pergunta «Sabes o que me estás a pedir?» verbaliza. É que, na verdade, não sei. Não sei de todo, a não ser que assim o expressam os grandes místicos. Mas se «sou uma montanha em Deus» e a tenho de subir (evoco o epigrama de Angelus Silesius em que glosa o salmo 121), fará sentido que a veja aplanada? Se esse "eu" de que me desejo libertar "está aí" é porque é da Sua vontade que aí esteja, do mesmo modo que se estou no mundo é porque Ele assim o quer. O eu e o mundo não são dissociáveis. Como poderia agir no mundo se não através dele? Deverei com a carga lançar ao mar o próprio «aparelho do navio»? Estou, naturalmente, a convocar Act 27: 18-19, que muito me ajudou um dia a libertar-me, se não de mim mesma e dos meus desejos, certamente dos meus medos de então.
Luminoso é a respeito de tudo isto o ensinamento do Viandante no seu post de ontem: só tenho de totalmente confiar nos Seus desígnios e puramente acolher o que vier como sendo da Sua vontade que venha: nada querer senão o que Ele quer. Canto silenciosamente as palavras do cântico: «Faz-me amar, faz-me querer o que Tu queres». Amar assim, sem âmbito que o delimite, bastaria. Ou não fosse o mesmo que ter como vontade a Sua vontade, erradicando a própria.
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