sábado, 14 de abril de 2012

«Je ne peux pas emporter ce corps-là. C’est trop lourd.»

Um passo de profunda ressonância no plano de realização simbólica de O Principezinho é aquele em que, no último capítulo, o narrador nos diz:
«... je sais bien qu’il est revenu à sa planète, car, au lever du jour, je n’ai pas retrouvé son corps. Ce n’était pas un corps tellement lourd…»

Se a primeira frase, fazendo pleno sentido no texto, suscita simultaneamente a imediata evocação, extra-texto, do “túmulo vazio” na manhã da ressurreição, a segunda religa-se no texto ao passo em que o Principezinho anuncia a sua partida:
«– Tu comprends. C’est trop loin. Je ne peux pas emporter ce corps-là. C’est trop lourd.
Moi je me taisais.
– Mais ce sera comme une vieille écorce abandonnée. Ce n’est pas triste les vieilles écorces…»

São tantos os ecos e reverberações intertextuais que se misturam e confundem que a escolha que faço é determinada pelo que me levou a esta reflexão por via da escrita, nomeadamente  os «corpos» ou "princípios" que nos constituem, dos quais o corpo físico é, por ordem decrescente de peso/densidade, o primeiro, na sua maravilhosa adequação ao não menos maravilhoso (se desta perspectiva o olharmos) mundo físico que nos é dado habitar por um tempo: segundo o mesmo critério de ordenação, o primeiro nível de vibração, esfera de existência, morada, ou outro nome que se queira dar. Prefiro falar em "dimensões da realidade", das quais esta será a mais densa. A tabela, colhida aqui, é uma das muitas interpretações ocidentais (e ocidentalizadas) desta visão.
 
Foi, como já o terei dito, o poema de Fernando Pessoa (ortónimo) que abaixo transcrevo que me levou a um primeiro confronto com a visão dos «sete corpos ou princípios» que, segundo as doutrinas teosóficas, nos constituem (refiro-me ao que é exposto na tradução que Pessoa fez de  C.W. Leadbeater, Compêndio de Teosofia, 1921) . Contemplada pelo budismo tibetano, esta visão remonta  aos livros sagrados hindus em sânscrito, encontrando-se hoje disseminada entre nós (na literatura "duvidosa" que prolifera é imperioso fazer o «discernimento do espírito»). Trata-se, em síntese, das várias “vestes” que recobrem a nudez absoluta da “trindade” feita à imagem da divina, adequadas às várias "dimensões" em que nos movemos, na medida do avanço individual de cada um na "viagem" que faz, «de claridade em claridade».

Ante o mistério de Deus que se faz Homem para fazer do homem Deus, não posso desmerecer os "corpos", "vestes", dimensões  em que Ele se manifestou no tempo. No Tabor (Mat 17:2), «o Seu rosto resplandeceu como o sol» e as próprias roupas «tornaram-se brancas como a luz». Prefiro pensar em termos de um progressivo avanço «de claridade em claridade» (com "saltos quânticos") do que em termos do progressivo desnudamento num retorno à fonte. Se não nos quisesse fazer chegar ao mar,não nos teria feito rios... Tudo isto é, naturalmente, matéria inesgotável de reflexão.
tornaram brancas como a luz
Mateus 17:2
E transfigurou-se diante deles; e o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes se tornaram brancas como a luz.
Mateus 17:2
E transfigurou-se diante deles; e o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes se tornaram brancas como a luz.
Mateus 17:2

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
…………………………………………….
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.

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A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não ‘stás morto entre ciprestes.
………………………………………………….
Neófito, não há morte.