terça-feira, 3 de abril de 2012

O voo do pardal e o da águia

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Continuo a ler Paul Auster, seduzida pela sua prodigiosa arte de narrar. Agora é The Brooklin Follies que tenho em mãos. Assinalo à margem os passos em que algo que me toca se me dá a pensar. A minha mãe comentava, na mesma língua da escrita, mas nunca coincidem os passos que assinalamos. No entanto, quanto mexe comigo, agora que ela partiu, encontrar estes traços seus no caminho que um dia percorreu também. Ler sempre foi para mim entrar num mundo que não é o meu, mas em que me sinto convidada a entrar, podendo dele tomar quanto queira. Uma actividade recolectora, portanto.

Se asas tenho, são como as dos pardais. O mais alto que subo é ao cimo das árvores. Por isso nunca é panorâmica a minha visão. Quando tal me é pedido, sigo uma metodologia adequada às minhas capacidades: tomo um número restrito de temas e percorro o caminho na sua peugada. Depois junto o que recolhi, uno e cirzo. Então começo a ver um desenho, entre muitos possíveis.

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Tanto mais admiro a águia que, lá do alto, vê toda a paisagem num relance sem lhe escapar o pormenor. É assim que discerne configurações, padrões, desenhos, descobrindo-os e relevando-os no acto em que os inventa, lá estando, lá tendo estado sempre. Descoberta e invenção implicam-se mutuamente no seu olhar.  Fascina-me este modo de escrita sobre a escrita, que é, sim, a leitura no mais pleno sentido do termo.

A leitura que faço é, pois, como disse atrás, comparável com o que faz o pardal: esvoaça, pousa e apanha sementes e migalhas do chão. Muito do mesmo, claro, segundo os critérios de selecção que  a natureza lhe dita. Neste livro de Auster assinalei à margem do texto este fragmento da descrição que o protagonista-narrador faz da mulher com quem mete conversa, sabendo que, idealizando-a, o sobrinho a tem por perfeita:

 «She was an easy person to talk to - very open, very generous, altogether warm and friendly - but, alas, not so terribly bright as it turned out, since it wasn't long before I learned that she was a devoted believer in astrology, the power of crystals, and all kinds of other New Age hokum.»

O juízo formulado é inequivocamente da personagem Nathan Glass. Auster não dá margem a confusões entre narrador e autor, de tal modo que, mesmo nas obras não ficcionais continuo a escutar - na minha própria voz, já se sabe - um narrador protagonista que em si mesmo anula a distinção entre real e ficcional, entre vida e literatura.
Reajo a este "jumping out to conclusions": «alas, not so terribly bright». Tenho de ter cuidado com o que digo, penso comigo. Não que corra riscos de passar por newager, já que lhes detesto o tique de falarem como se estivessem de posse da verdade. Mas não sou insensível, se não ao poder, certamente ao fascínio dos cristais e das pedras, assim como às cartas do Tarot (ou não reencenassem elas o tema da viagem), ou mesmo aos oráculos, astrológicos ou maias. «Not so terribly bright». Seja. Mas não penso eu o mesmo dos «devoted believers» in the positivism of Modernity? Não os olho eu como «not so terribly bright»?

Se relativamente à religião reconheço passar por vezes as raias da heresia, mais são as vezes em que as transponho no que toca à ciência que Kuhn chamou "normal". É assim que  um  «devoted believer» no que quer que seja me desperta tanta simpatia quanto me suscita aversão um «fanatic believer» no que quer que seja também. Por este sinal os reconheço: enquanto o primeiro faz pela positiva a apologia daquilo em que crê e que profundamente conhece, o segundo fá-la pela negativa, atacando e desmerecendo aquilo em que não crê e de que só superficial ou estereotipadamente tem conhecimento.