sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

oração de quietude e silêncio

Olhando a descontinuidade, a noção de "componente" desfaz-se para dar lugar à de "elemento", em si mesmo um todo uno, à semelhança do todo do tudo no ponto em que o tempo e o não tempo se tocam.

Um poema oferece-se como, em si mesmo, um todo desta natureza. Tomo, do Viandante, o poema 76, "Terra do esquecimento". O que se configura cria a dimensão em que, "acontecendo", é. Diferentemente das imagens de scrying, o que se configura nasce de uma relação, em si mesmo um mistério, com o "outro" na sua transcendência não imanente: o "outro" que é "fora de mim", ainda que só "em mim" o possa "tocar", sempre, porém, nesse ponto de onde o "terceiro" irrompe, inapreensível.

Estão, assim, criadas as condições propícias à interpretação, à meditação, à glosa. Diria que sempre estes poemas convidam à oração. Na imagem que me é dada, aquele que S. Paulo declara "herdeiro do mundo" confronta-se com o que vê dessa herança: "ervas e tormentos". E, como um rei assume o poder, assim no mesmo gesto, ele assume a cruz:

"a trémula mão
ergue-se
sobre um império
de ervas
e tormentos."

"A trémula mão / ergue-se": "Na minha fraqueza está a minha força", diz ainda S. Paulo. Por que poder senão pelo do "Espírito"? E o gesto é ao mesmo tempo de louvor.

Tudo concorre no "momento" assim reconfigurado para fazer dele uma reiteração do "momento no jardim das oliveiras". Descem os anjos a comfortá-Lo. Ainda há tão pouco tempo meditava sobre este passo e ligava o "consolo" dos anjos ao Espírito, a restabelecer a "Trindade" do "Deus uno e trino", que nos faz "à Sua imagem". Que assim seja no "momento derradeiro". Neste pensamento, o fecho do poema faz-me estremecer:

"e no súbito fulgor
um anjo anuncia
o voo
de um pássaro
na terra
do esquecimento".

E neste estremecimento todas as imagens e interpretações se desfazem e a oração que se refaz é de silêncio e quietude: "voo na terra do esquecimento".
Que o anúncio do anjo seja o deste momento de oração em que Ele está em nós e connosco, no nosso encontro no poema.