quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Regressar progredindo: Pilgrim's progress como caminho de Emaús

Inerente à poesia é também a ligação profunda, diria mesmo arquetípica, entre o semiótico e o semântico. A assonância e a aliteração são de tempos imemoriais, remontam a uma Urschrift, a uma escrita anterior à fala, do tempo pré-verbal da infância da humanidade em que se falava e cantava "em línguas" como os anjos e as aves . Estou a levar longe demais um momento poético do ensaio de Herder, é verdade, mas esta perspectiva infantil, nem evolucionista, nem criacionista, é sedutora: religiosa no sentido etimológico em que faz a religação entre a terra e o céu. Traherne advogá-la-ia. E porventura também agradaria ao Viandante.

Prosseguindo nesta orientação, diria que, nos seus poemas, indissociável da luminosidade das imagens (mesmo quando me "dão a ver" a noite e as sombras), há um como que canto em línguas feito da beleza musical dos sons que fecundam as palavras que os geram. Se estou a parafrasear J.M. André (no prefácio à tradução de De visione Dei) dizendo do som o que ele diz do silêncio, também e ao mesmo tempo, o que diz do silêncio (daquele que vem do que há de mais fundo em nós, de tão fundo que é ao mesmo tempo fora de nós) se aplica aqui.

Não é estranha a tudo isto a poderosíssima força do arquétipo - como o é e por excelência a água (que inunda o poema e dele transborda). Assomando do profundo, do que "já não provém da experiência e da hereditariedade pessoais" (Jung) "não nos afecta só mentalmente, move os nossos centros emotivos mais profundos" (assim fala D.H. Lawrence sobre o mito e o símbolo).
O fascínio, porém, só mesmo o poema o pode dizer, sendo-lhe inerente esta trindade dinâmica de letra, sentido, espírito, à semelhança da divina. As respectivas ciências (semiótica, semântica, e... nenhuma havendo do "espírito", candidatar-se-ia a hermenêutica?) teriam de se relacionar do mesmo modo se delas se esperasse explicar o fascínio da poesia.

O fascínio do poema "Filho pródigo" é ao mesmo tempo o do templo de que falei no meu último post, onde, atravessado o átrio, quisesse afastar a cortina do "santo dos santos" e a água me inundasse, levando-me "a esses dias / onde tudo era / água"... "a manhã / que abria uma rosa /no quintal ... as horas / que passavam / no esquecimento / de passar ".... Levando-me aonde vou, num regresso que é progresso: "é como regressar /a essa água / que de ti corre / todos os dias".

Se faço das palavras da Cananeia a minha oração quotidiana - "Senhor, dá-me dessa água para que nunca mais tenha sede", não menos a beberei das mãos daquele em quem Ele a faz jorrar: "e do seu seio jorrarão rios de água viva". Onde, mais viva do que num poema , a encontraria? Será heresia dizer que, se me a deu já a beber das Suas mãos (que é o "momento da "compreensão" senão beber dessa água?) será da Sua vontade que, nesta caminhada, me faça prosseguir dando-ma a beber da fonte em que a faz brotar?

Consentir-me-á o Viandante que transponha para aqui o poema, se me autorizou a que o acompanhasse na viagem, refazendo (re- no mesmo sentido que o re- do segundo "regressar "do poema), o "caminho de Emaús".

"regressar a esses
dias
onde tudo era
água –

a manhã que abria
uma rosa no quintal
as horas que
passavam
no esquecimento
de passar –

é como
regressar a essa
água
que de ti corre
todos os dias "