Como não hei-de amar as palavras?
O que anseio com respeito às palavras não é o regresso impossível (e completamente indesejável) ao que possa fantasiar ter sido a «língua pura», seja num mítico tempo pré-Babel, seja num não menos mítico jardim do Éden, seja no que, na história do desenvolvimento do «eu», T.T. faz corresponder à fase pré-verbal, que surge e ressurge nas suas mais belas páginas. Destaco (do poema «Dumnesse»):
«Não os ouvidos,
mas os próprios olhos eram ali todos os ouvintes.
E cada pedra e cada estrela uma língua,
e cada sopro do vento uma singular canção.»
Tudo lhe falava, diz, numa língua que, na sua mudez, plenamente entendia. No entanto, não há qualquer nota de saudosismo (como viria ser o caso em Wordsworth e nos românticos) no que relata, de vibrante que é nas suas palavras a plena e segura certeza de que o que há a buscar é adiante: tudo isto e mais. Um «mais» que faz toda a diferença.
Na verdade, se se tratasse de regressar ao que foi, que sentido faria partir? Ou, se o percurso é circular, porventura terá de ser ao mesmo que se volta? Não vejo que a ideia de circularidade («from into the main», numa das expressões de T.T.) implique necessariamente o fechar de um círculo, antes a vejo "traçar" o avanço «de claridade em claridade» (em «anéis crescentes») até à "luz da luz" - o superlativo hebraico para o qual A.S. constrói a expressão «überlichtiges Licht».
É como construção verbal congénere que faz sentido (para mim) o termo nietzscheano «übermenschlich» : übermenschlicher Mensch é (para mim) aquele que, ainda que por instantes, num «momento dentro e fora do tempo», de si diga «não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim».
No seguimento de tudo isto , a «reine Sprache» é (para mim) a «übersprachliche Sprache» que anseio (e me encanta, deslumbra, fascina) ver, escutar, sentir, saborear, aspirar nas palavras («todos os sentidos num só confundidos»). Não será isso mesmo o que elas próprias esperam? Dar corpo à «revelação dos filhos de Deus» (evoco o enigmático passo de Rom 8:19)?
Só a poesia o pode fazer, «já e ainda não». E fá-lo no poema. Direi, assim, que é tanto mais belo quanto nele sinta vibrar a «übergedichtliches Gedicht» que o anima já. Como não hei-de amar as palavras? Como não me há-de fascinar «a límpida catedral / de seda e água» que são - e a que dão corpo, alma e espírito - estas mesmas palavras no poema? Não é a sua realidade mais real do que a pedra de que «cai»? Tão real como (de «esse lugar de erva / musgo e fogo») tocar-nos o anjo «ao quebrar da noite / os ombros /- os meus e os teus - / estremecidos / pelo fervilhar do frio»...
Como se não hão-de amar as palavras?
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