segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O cristianismo de hoje

É entendimento generalizado de todos os leitores críticos de Traherne o de que o seu "cristianismo" avança séculos sobre o seu tempo, antecipando a ênfase de hoje na alegria na fruição dos dons de Deus (que incluem a própria existência, a do outro, a do mundo, a de Deus), na certeza de que as trevas, que são apenas a ausência da luz, não só nada podem sobre ela, como, no contraste, mais intenso tornam o seu brilho, e na confiança de que, sejam quais forem as vicissitudes a passar, tudo a seu tempo concorre para um maior bem, não num outro mundo, mas já neste, pois que o Seu Reino está em nós.

A visão cristã de hoje, contrariamente à que durante séculos e até muito recentemente dominou (em 1917, a pequenina Jacinta deixa testemunho da catequese de então), é a que à imagem de Jesus crucificado sobrepõe a de Jesus ressuscitado, com tudo o que decorre desta axial mudança de perspectiva. Nas novas igrejas não há dificuldade em o tomar à letra e os crucifixos dão lugar a imagens despegadas da cruz (por vezes num radicalismo que, como a da nova basílica de Fátima, passa em branco a descida da cruz e a deposição no sepulcro), ou decalcadas sobre a de Nossa Senhora das Graças, a mulher vestida de sol do Apocalipse, com traços simbólicos a convocar o que possamos sentir ante um "corpo glorioso". Popularizou-se a que Santa Faustina fez pintar conforme a visão que teve.

A tradicional insistência no pecado (afinal também uma forma de sofrimento) deu lugar à exaltação da Sua infinita misericórdia e do amor que tudo perdoa, amor que é Ele mesmo, amor a que todos somos chamados, todos podendo começar de novo e a qualquer momento uma nova vida nesse espírito que é o Seu. A este amor que é graça - kharis - (de onde a tradução latina de agaph por charitas ) eleva S. Paulo o hino (I Cor 13) que é porventura o mais belo poema da Bíblia. 

 «Another», que coloquei  no blogue que dedico a T. Traherne, é uma glosa ao tema do amor divino e do seu mistério.