segunda-feira, 20 de abril de 2009

Falei em discernimento. O termo "discernir" tem a grande vantagem de não ter etimologicamente nada a ver com captar ou prender (como "perceber", "conceber", "apreender", "compreender"); significa joeirar e, deste modo, distinguir, separar. A joeira é neste caso o "olhar puro" (como o defini num post anterior). Escolhe o melhor e sopra o resto. A escolha é tanto intelectual como afectiva (no olhar puro estas componentes são inseparáveis): o melhor, tal como o mais belo, é o que mais agrada (à razão e ao coração simultaneamente) e manifesta-se pelo transbordar da alegria (que é inerente ao olhar puro). Os grandes motets de Bach, muito em especial Jesu meine Freude, comprazem-me sobremaneira desde a adolescência. E as palavras são tão essenciais quanto a música:

Jesu meine Freude, meines Herzens Weide, Jesu meine Zier.

Evoco o que diz G. Agamben em O tempo que resta sobre o facto de a fé ser expressa por um grupo nominal (Iesous Christou) e não por uma oração. Traduzo da versão francesa o passo de O tempo que resta (sexta jornada) a que me refiro:

"Um mundo que não é feito de substância e qualidades: não um mundo em que a erva é verde, o sol quente, a neve branca. Não, não é um mundo de predicados, de existências e de essências, mas um mundo de acontecimentos indivisíveis no qual não julgo e não creio que a neve é branca e que o sol é quente, mas pelo contrário no qual sou transportado e deslocado para o ser-a-neve-branca e para o ser-o-sol-quente."

Extrapolando para os grupos nominais do início do motet (inseparáveis da música e da voz ) direi que não se trata de julgar ou crer ou mesmo sentir que Jesus é a minha alegria, o meu deleite, a minha glória, trata-se de ser transportada, deslocada, para o ser-Jesus-a minha alegria, o ser-Jesus- o deleite (pastagem) do meu coração, o ser-Jesus-a minha glória.
É neste mundo que dizer Jesus é o mesmo que dizer a minha alegria, deleite e glória.
Agamben continua, nestes termos, a elucidar o que é este "mundo da fé":

"Enfim, um mundo no qual não creio que Jesus, esse homem, é o messias , filho único de Deus, gerado e não criado, consubstancial ao Pai; mas creio somente em Jesus messias, sou arrastado e transportado para ele, de tal maneira que «não sou eu que vivo, mas é o messias que vive em mim".

Neste livro (absolutamente magnífico) Agamben faz, em seis jornadas, um comentário à Epístola de S. Paulo aos Romanos, tomando cada uma das dez palavras do seu incipit, que, conforme sublinha, "recapitulam todo o texto". E o termo "recapitular" é, conforme deixa claro, um termo messiânico paulino a que se irá ater. É assim que, logo na primeira jornada, explica que, no vocabulário de S. Paulo, christou não é um nome próprio, mas a tradução do termo hebraico masiah (o ungido, o messias): Christou Iesous é "o messias Jesus". Compreende-se, diz-nos, que não faça sentido designar por "discípulo de Cristo" (entendimento comum de "cristão") "o que vive no messias", o que vive "uma vida messiânica" no "tempo messiânico". O que isto significa é a questão fundamental de S. Paulo, que Agamben coloca e clarifica admiravelmente neste livro.