quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Descentração

Não veio, porém, através de um poema o que tenha sido sair de mim mesma.  Aconteceu quando não fazia ideia do que tal fosse, há mais de trinta anos, quando era pequenina a minha primeira filha e toda a família foi com ela ao jardim zoológico. Atraiu-me um animal de que ninguém se abeirava, talvez  por isso mesmo.  De repente fiquei só diante dele e em pensamento acariciei-o, certa de que nunca ninguém o teria jamais feito ou desejado fazer. Há animais de quem ninguém gosta...
Tenho evocado muitas vezes este momento em que mais do que um encontro de olhares aconteceu tocarem-se os olhos, no sentido em que Derrida usa a expressão na pergunta que tanto me fascina («quando os nossos olhos se tocam, é dia ou é noite?»). Como, se não formulando-o assim, posso dar conta do que experienciei? Foi como se estivesse de repente naquele animal (ou ele estivesse em mim),  por detrás daquelas grades, naquele espaço exíguo e vazio, sem mundo. Um ténue vislumbre da experiência, reportada a Siddhartha, que li mais tarde narrada por H. Hesse no livro com o mesmo nome (de que se pode ler  aqui a tradução inglesa). Destaco um breve trecho: 

«A heron flew over the bamboo forest--and Siddhartha accepted the heron into his soul, flew over forest and mountains, was a heron, ate fish, felt the pangs of a heron's hunger, spoke the heron's croak, died a
heron's death.»

Nessa altura ainda não tinha consciencializado o que mais tarde descobri designado por scrying, sendo dessa natureza a paisagem de carvalhos e sobreiros que interseccionou aquele espaço. Ainda tenho na memória o solo coberto de folhas secas a deixar ver aqui e ali a terra escura  e solta e  faixas do sol poente que penetrava através dos troncos. 

Afastei-me com a tristeza de nada poder fazer para o devolver ao mundo que  era o seu. Tinha, porém, experimentado algo de novo e de maravilhoso  que não pude, então, compreender. Não me surpreende que  tantas vezes se configure a imagem deste animal nessas aventuras  do olhar que por vezes acontecem ao olhar o escuro.
Se o fundo do olhar de um animal me pôde descentrar de mim, como o não fará o que de insondável me fascina em certos poemas, por isso mesmo especiais?