Descentração
Não veio, porém, através de um poema o que tenha sido sair de mim mesma. Aconteceu quando não fazia ideia do que tal fosse, há mais de trinta anos, quando era pequenina a minha primeira filha e toda a família foi com ela ao jardim zoológico. Atraiu-me um animal de que ninguém se abeirava, talvez por isso mesmo. De repente fiquei só diante dele e em pensamento acariciei-o, certa de que nunca ninguém o teria jamais feito ou desejado fazer. Há animais de quem ninguém gosta...
Tenho evocado muitas vezes este momento em que mais do que um encontro de olhares aconteceu tocarem-se os olhos, no sentido em que Derrida usa a expressão na pergunta que tanto me fascina («quando os nossos olhos se tocam, é dia ou é noite?»). Como, se não formulando-o assim, posso dar conta do que experienciei? Foi como se estivesse de repente naquele animal (ou ele estivesse em mim), por detrás daquelas grades, naquele espaço exíguo e vazio, sem mundo. Um ténue vislumbre da experiência, reportada a Siddhartha, que li mais tarde narrada por H. Hesse no livro com o mesmo nome (de que se pode ler aqui a tradução inglesa). Destaco um breve trecho:
«A heron flew over the bamboo forest--and Siddhartha accepted the heron into his soul, flew over forest and mountains, was a heron, ate fish, felt the pangs of a heron's hunger, spoke the heron's croak, died a
heron's death.»
heron's death.»
Nessa altura ainda não tinha consciencializado o que mais tarde descobri designado por scrying, sendo dessa natureza a paisagem de carvalhos e sobreiros que interseccionou aquele espaço. Ainda tenho na memória o solo coberto de folhas secas a deixar ver aqui e ali a terra escura e solta e faixas do sol poente que penetrava através dos troncos.
Afastei-me com a tristeza de nada poder fazer para o devolver ao mundo que era o seu. Tinha, porém, experimentado algo de novo e de maravilhoso que não pude, então, compreender. Não me surpreende que tantas vezes se configure a imagem deste animal nessas aventuras do olhar que por vezes acontecem ao olhar o escuro.
Se o fundo do olhar de um animal me pôde descentrar de mim, como o não fará o que de insondável me fascina em certos poemas, por isso mesmo especiais?
Se o fundo do olhar de um animal me pôde descentrar de mim, como o não fará o que de insondável me fascina em certos poemas, por isso mesmo especiais?
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