Voltando ao criador e à criatura
Assiste-nos alguma parte na criação da história que protagonizamos - na verdade, por ser de natureza tão outra o seu suporte, este é em muitos aspectos comparável a um texto. É certo que o texto-vida e o texto-obra se podem "ler" como se de duas realidades paralelas se tratasse; paralelas, porém, num espaço que a todo o momento se encurva e, então, pontos há que se encontram e mutuamente se iluminam. Seja simbólica, seja lógica, a linguagem envolve-nos sempre na criação/construção do sentido, de onde a proeminência que tem sido dada ao acto de leitura sobre o acto criativo de escrita que, mesmo para o próprio criador, parece reclamar obediência à sentença final do Trataktus.
Dado que no texto-vida o criador se oculta na criatura (como acontece no mais conseguido romance em que toda a "voz autoral" é silenciada), a questão do autor só se coloca com respeito ao texto-obra, seja o seu suporte a palavra, a imagem, ou o puro som (ou tudo isto junto). Parece-me, porém, observar-se alguma incoerência na sua colocação.
Se, ao ler uma reflexão, um comentário, uma crónica, um ensaio filosófico, identifico o sujeito da enunciação com o autor, porque o não hei-de fazer ao ler um poema que esse autor tenha também escrito? Ou porque, havendo uma distinção de "suporte" (o autor no da vida, o sujeito da enunciação no da obra), não hei-de ser coerente e observar sempre uma distinção entre uma categoria e outra, inclusivamente no texto mais funcional, como, por exemplo, uma lista de compras ou uma receita de culinária? Há tempos encontrei uma, escrita pela minha avó. Ao lê-la não a terei de algum modo chamado ao texto-vida? Sempre que se evocava alguém que tivesse morrido, recordo vivamente que ela acrescentava sempre «que Deus haja».
Se, ao ler uma reflexão, um comentário, uma crónica, um ensaio filosófico, identifico o sujeito da enunciação com o autor, porque o não hei-de fazer ao ler um poema que esse autor tenha também escrito? Ou porque, havendo uma distinção de "suporte" (o autor no da vida, o sujeito da enunciação no da obra), não hei-de ser coerente e observar sempre uma distinção entre uma categoria e outra, inclusivamente no texto mais funcional, como, por exemplo, uma lista de compras ou uma receita de culinária? Há tempos encontrei uma, escrita pela minha avó. Ao lê-la não a terei de algum modo chamado ao texto-vida? Sempre que se evocava alguém que tivesse morrido, recordo vivamente que ela acrescentava sempre «que Deus haja».
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