quinta-feira, 26 de abril de 2012
Da “tabela periódica dos elementos”, oito constituem 90% da crosta
terrestre enquanto quatro perfazem a mesma percentagem do que em nós é a «casca» de que nos vamos desprendendo, a «veste» que vamos despindo, isso que fica aí, «como um pedaço de qualquer coisa». Uma tradução feliz esta, de Paulo Quintela, para «wie ein Stück (...), rein wie ein Stück».
Teria uns sete ou oito anos quando, ao sair da
catequese na igreja dos Anjos, a curiosidade me fez aventurar-me a
descer sozinha à cripta, onde se fazia, tinham-me dito, a vela dos mortos.
Ainda me pergunto como é que não encontrei ninguém. Só o caixão aberto e lá dentro o que, sem ter alguma vez ouvido falar em tal, me pareceu exactamente isso: «um pedaço de qualquer coisa».
Quando, muito mais tarde, li os Cadernos de Malte Laurids Brigge, evoquei este episódio, bem como outros mais, sendo grande a profusão dos passos que narram ou aludem a
experiências que me não eram de modo algum alheias (como a da máscara de cera da afogada no Sena, da aventura da mão no escuro
debaixo da mesa, das reflexões despoletadas pelos restos de vida ainda agarrada às paredes que, de cada lado, sustentam os prédios
demolidos, a percepção da intransitividade do amor, etc.).
Soma e sarx.
Poucas vezes faço uso da sinédoque “carne” para referir o "corpo físico", de tão diferente é a natureza da carga semântica que cada uma destas palavras comporta. Lembro-me de em criança me arrepiar, ao enunciar o Credo dos Apóstolos, a concreticidade a que esta palavra arrasta o mistério da "ressurreição". Era proclamar que cria no que não queria, querendo o «corpo espiritual» anunciado em 1 Cor 14:44. Neste ponto pareceu-me mais feliz o Credo niceno: (creio) «na ressurreição dos mortos», ainda que acolhesse aqui a impressionante correcção proposta pela minha filha, quando tinha cinco anos:«os mortos, não: os que morreram». (Cheguei a utilizar esta distinção para explicar a diferença entre um epíteto, um classificador e um qualificador como constituintes - adjuntos adnominais - do grupo nominal).
Fui (em tempos) confirmar se seria soma (e não sarx) o termo grego (por sua vez tradução do aramaico) que na Vulgata era traduzida por corpus nas palavras da consagração hoc est enim corpus meum. Confirmei-o: Touto estin to soma mou (Marc 14:22, Mat 26:26, Luc 22:19). Em 1 Cor 11:24 (texto anterior ao dos evangelhos) a ordem das palavras é ligeiramente diferente: Touto mou estin to soma. No entanto, sarx - especificamente para "carne" - surge em Jo 6:52-58, e.g. «quem come a minha carne e bebe o meu sangue». Encontrei aqui informação a este respeito relevante: (...) The Aramaic scholars I have spoken to tell me that sarx is as close as you can get in Greek to the Aramaic bisra, which Jesus himself used.
Seja soma, seja sarx o termo utilizado, a «presença real» de Cristo nas espécies consagradas estará na realização experiencial do símbolo e não no entendimento literal ou metafórico do seu modo de expressão.
segunda-feira, 23 de abril de 2012
S.Jorge, 23 de Abril
daqui |
O dia de hoje é consagrado a S. Jorge.Transcrevo daqui (com ligeiros reajustes):
daqu |
Em Inglaterra, principalmente, o seu culto tornou-se, e ainda é, mais popular. Em 1222 o concílio nacional de Oxford estabeleceu uma festa de preceito em sua honra. Nos primeiros anos do séc. XV o arcebispo de Cantuária ordenou que tal festa fosse celebrada com tanta solenidade como o Natal. Antes disso o rei Eduardo III tinha fundado, em 1330, a célebre Ordem dos Cavaleiros de São Jorge (conhecidos também pelo nome de Knights of the Garter).
No lugar onde esteve içada a bandeira de Portugal por ocasião da
batalha de Aljubarrota foi construída, em 1388, uma ermida dedicada a
São Jorge. Em 1387 começou a incorporar-se na procissão do Corpo de
Deus, por ordem de D. João I, a imagem deste Santo, a cavalo.
daqui De um comentário a este vídeo:
The meaning of St. George and the dragon is deeper than one might think.
St. George is closely related to the Archangel Michael. The dragon
stands for evil or the devil. St. George defeats evil with the help of
St. Michael. St. Maurice is also a military Saint and was as important.
He brought the Holy Lance of Christ to Europe. The Holy Lance has given
Christianity the tools to defeat evil.
|
segunda-feira, 16 de abril de 2012
de volta aos «sábios e entendidos»
Todos os "ateus" e "agnósticos" que tenho conhecido (coloco entre aspas por não ser classificação minha, antes sua, sendo que como tal se apresentam e como tal quase orgulhosamente se assumem) têm em comum o cuidado de se demarcarem como «sábios e entendidos» dos que, em virtude das crenças que lhes atribuem, ainda que benevolamente não deixam de olhar de cima. Já sei, à partida, que, no momento em que me diga cristã, me verei metida no uniforme da representação estereotipada que têm do cristão e daquilo em que acredita (é evidente que procedem da mesma maneira com o islamismo e o judaísmo, e mesmo com o budismo, pesando a diferença apenas na componente interpessoal afectiva).
Em obediência ao princípio de não fazer com o outro o que não quero que faça comigo, não atribuo conteúdos à crença que têm, já que reconheço que a "ciência" que entronizam pode ir desde a própria de cada um, à "normal", à "de ponta" e até à que olho como um dos «dons do Espírito».
Em obediência ao princípio de não fazer com o outro o que não quero que faça comigo, não atribuo conteúdos à crença que têm, já que reconheço que a "ciência" que entronizam pode ir desde a própria de cada um, à "normal", à "de ponta" e até à que olho como um dos «dons do Espírito».
A antropomorfização da divindade integra a representação estereotipada que fazem do cristão. Este, não menos "esclarecido" e conhecedor desta natural tendência humana de todos os tempos e culturas, sentir-se-á inclinado a privilegiar a "via negativa" (apofática) e a levar o despojamento e libertação de si mesmo até se ver como o nada que manifestamente é (e nem precisa de se olhar à escala cósmica). Impõe-se-lhe pensar um Deus não antropomórfico, a que nenhuma qualidade humana, nem mesmo a sua negação, é atribuível. Não lhe bastando reduzir o processo relacional - a é b - ao existencial - a é - , (contrariando o axioma matemático) toma-o simultaneamente nas suas duas polaridades: a (não) é. E absorve nesta perspectiva a do que se auto-denomina ateu.
Se, nesta medida, enfileira entre os «sábios e entendidos» a quem permanece oculto o que é revelado aos «humildes e pequeninos», desenfileira-se no momento em que ao mesmo tempo acolhe a "via afirmativa", que retoma o processo relacional básico: a é b, em que b é elevado ao superlativo da perfeição.
Nesta dupla perspectiva (a que envolve simultaneamente uma e outra vias), não só Deus é tudo em todos como cada um é tudo em Deus, que o vê como único que é.
Nunca percebi a dificuldade em Lhe reconhecer esta capacidade de ver simultaneamente o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, e sentir, sofrer, com e em cada ser, por mais pequenino, o que ele sente e sofre - e neste sentir e sofrer de Deus não incluo só o de cada homem, mas o de cada ser em toda a criação.
Este cântico (e quem o canta) parece-me particularmente significativo.
Transcrevo do texto informativo de um outro vídeo:
"How Great Thou Art" is a Christian hymn based on a Swedish poem written by Carl Gustav Boberg (1859-1940) in Sweden in 1885. The melody is a Swedish folk song. It was translated into English by British missionary Stuart K. Hine, who also added two original verses of his own composition.
O Lord my God!
When I in awesome wonder
Consider all the works
Thy hands have made.
I see the stars,
I hear the rolling thunder,
Thy power throughout the universe displayed.
Then sings my soul, my Saviour God, to Thee;
How great Thou art, how great Thou art!
Then sings my soul, My Saviour God, to Thee:
How great Thou art, how great Thou art!
Nesta dupla perspectiva (a que envolve simultaneamente uma e outra vias), não só Deus é tudo em todos como cada um é tudo em Deus, que o vê como único que é.
Nunca percebi a dificuldade em Lhe reconhecer esta capacidade de ver simultaneamente o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, e sentir, sofrer, com e em cada ser, por mais pequenino, o que ele sente e sofre - e neste sentir e sofrer de Deus não incluo só o de cada homem, mas o de cada ser em toda a criação.
Este cântico (e quem o canta) parece-me particularmente significativo.
Transcrevo do texto informativo de um outro vídeo:
"How Great Thou Art" is a Christian hymn based on a Swedish poem written by Carl Gustav Boberg (1859-1940) in Sweden in 1885. The melody is a Swedish folk song. It was translated into English by British missionary Stuart K. Hine, who also added two original verses of his own composition.
O Lord my God!
When I in awesome wonder
Consider all the works
Thy hands have made.
I see the stars,
I hear the rolling thunder,
Thy power throughout the universe displayed.
Then sings my soul, my Saviour God, to Thee;
How great Thou art, how great Thou art!
Then sings my soul, My Saviour God, to Thee:
How great Thou art, how great Thou art!
domingo, 15 de abril de 2012
Händel (Der Messias): Ich weiß, dass mein Erlöser lebt
DRITTER TEIL
(I) Das Versprechen der Auferstehung des Fleisches
40. Arie
Ich weiß, dass mein Erlöser lebt und dass er am jüngsten Tage auf der Erde stehen wird; und wenn auch Würmer diesen Körper zerstören, werde ich in meinem Fleische Gott sehen.
Nun aber ist Christus auferstanden von den Toten, der Erstgeborene jener, die schlafen.
40. Air
I know that my redeemer liveth, and that He shall stand at the latter day upon the earth. And tho’ worms destroy this body, yet in my flesh shall I see God.
For now is Christ risen from the dead, the first fruits of them that sleep.
sábado, 14 de abril de 2012
«Je ne peux pas emporter ce corps-là. C’est trop lourd.»
Um passo de profunda ressonância no plano de realização simbólica de O Principezinho é aquele em que, no último capítulo, o narrador nos diz:
«... je sais bien qu’il est revenu à sa planète, car, au lever du jour, je n’ai pas retrouvé son corps. Ce n’était pas un corps tellement lourd…»
Se a primeira frase, fazendo pleno sentido no texto, suscita simultaneamente a imediata evocação, extra-texto, do “túmulo vazio” na manhã da ressurreição, a segunda religa-se no texto ao passo em que o Principezinho anuncia a sua partida:
«– Tu comprends. C’est trop loin. Je ne peux pas emporter ce corps-là. C’est trop lourd.
Moi je me taisais.
Moi je me taisais.
– Mais ce sera comme une vieille écorce abandonnée. Ce n’est pas triste les vieilles écorces…»
São tantos os ecos e reverberações intertextuais que se misturam e confundem que a escolha que faço é determinada pelo que me levou a esta reflexão por via da escrita, nomeadamente os «corpos» ou "princípios" que nos constituem, dos quais o corpo físico é, por ordem decrescente de peso/densidade, o primeiro, na sua maravilhosa adequação ao não menos maravilhoso (se desta perspectiva o olharmos) mundo físico que nos é dado habitar por um tempo: segundo o mesmo critério de ordenação, o primeiro nível de vibração, esfera de existência, morada, ou outro nome que se queira dar. Prefiro falar em "dimensões da realidade", das quais esta será a mais densa. A tabela, colhida aqui, é uma das muitas interpretações ocidentais (e ocidentalizadas) desta visão.
Foi, como já o terei dito, o poema de Fernando Pessoa (ortónimo) que abaixo transcrevo que me levou a um primeiro confronto com a visão dos «sete corpos ou princípios» que, segundo as doutrinas teosóficas, nos constituem (refiro-me ao que é exposto na tradução que Pessoa fez de C.W. Leadbeater, Compêndio de Teosofia, 1921) . Contemplada pelo budismo tibetano, esta visão remonta aos livros sagrados hindus em sânscrito, encontrando-se hoje disseminada entre nós (na literatura "duvidosa" que prolifera é imperioso fazer o «discernimento do espírito»). Trata-se, em síntese, das várias “vestes” que recobrem a nudez absoluta da “trindade” feita à imagem da divina, adequadas às várias "dimensões" em que nos movemos, na medida do avanço individual de cada um na "viagem" que faz, «de claridade em claridade».
Ante o mistério de Deus que se faz Homem para fazer do homem Deus, não posso desmerecer os "corpos", "vestes", dimensões em que Ele se manifestou no tempo. No Tabor (Mat 17:2), «o Seu rosto resplandeceu como o sol» e as próprias roupas «tornaram-se brancas como a luz». Prefiro pensar em termos de um progressivo avanço «de claridade em claridade» (com "saltos quânticos") do que em termos do progressivo desnudamento num retorno à fonte. Se não nos quisesse fazer chegar ao mar,não nos teria feito rios... Tudo isto é, naturalmente, matéria inesgotável de reflexão.
tornaram brancas como a luz
Mateus 17:2
Mateus 17:2
E transfigurou-se diante deles; e o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes se tornaram brancas como a luz.
Mateus 17:2
Mateus 17:2
E transfigurou-se diante deles; e o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes se tornaram brancas como a luz.
Mateus 17:2
Mateus 17:2
Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
…………………………………………….
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
………………………………………………..
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não ‘stás morto entre ciprestes.
………………………………………………….
Neófito, não há morte.
Pois não há sono no mundo.
…………………………………………….
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.
Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.
Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.
Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.
………………………………………………..
A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não ‘stás morto entre ciprestes.
………………………………………………….
Neófito, não há morte.
sexta-feira, 13 de abril de 2012
«a várias vozes» (uma reflexão de 2009 )
Ao ler um poema, ainda que a minha leitura seja silenciosa, estou a dar voz (a minha, ainda que lhe possa dar diferentes e múltiplas modulações) ao "sujeito da enunciação" (seja este quem o escreveu tornado "outro" de si). Deste modo o texto de novo se torna discurso e discurso vivo. É assim que "invento" (no sentido etimológico do termo) aquele que "fala" na voz que lhe dou. Falará, assim, "a várias vozes" como diz Derrida a fechar «Psyché, l'invention de l'autre», tantas quantas as vezes que o texto se tornar discurso e cada enunciado nova enunciação.
Enunciei de uma forma muito linear a questão que levantou a controvérsia em torno da (pretensa ou não) "morte do autor", com tudo o que possa ter de falacioso. Na verdade, por esta ordem de ideias, cada eu se tornará, no momento em que se expresse, sujeito da sua enunciação, diferente de si mesmo enquanto confinado ao silêncio. Por outras palavras, eu só sou eu enquanto não abrir a boca. Abrindo-a, torno-me imediatamente outra de mim. E se o que digo for gravado ou escrito, até para mim mesma me torno outra no momento em que me ouço ou me leio.
É incontestável que teoricamente assim é, pelo menos desde que Derrida trouxe, com a célebre différance, a questão do "suplemento" e da impossibilidade de repetição do mesmo: não há repetição, mas iteração. O texto escaparia à lei da suplementaridade se tivesse existência fora do discurso, o que não acontece.
Tudo isto é verdade do ponto de vista teórico, mas, levado ao extremo, toca o teológico, de acordo com o qual, em termos muito simples, eu sou só eu mesma para Deus. Poderia então dar expressão ao meu mais profundo anseio e dizer àquele a quem dou voz no poema («em mim fora de mim», portanto, seja no poema este "fora" seja nesse "não lugar" que é "não em mim"): quero conhecer-te como só Deus. É o princípio que se enuncia nas palavras "nada posso, porém Tu tudo podes em mim". Então realizaríamos a tríade divina em que "apenas o puro amor subsiste, nessa indiferença tão diferenciada".
Claro que é demasiado sagrado o que assim verbalizo para que o verbalizá-lo se não torne uma ainda que indesejada forma de profanação.
Enunciei de uma forma muito linear a questão que levantou a controvérsia em torno da (pretensa ou não) "morte do autor", com tudo o que possa ter de falacioso. Na verdade, por esta ordem de ideias, cada eu se tornará, no momento em que se expresse, sujeito da sua enunciação, diferente de si mesmo enquanto confinado ao silêncio. Por outras palavras, eu só sou eu enquanto não abrir a boca. Abrindo-a, torno-me imediatamente outra de mim. E se o que digo for gravado ou escrito, até para mim mesma me torno outra no momento em que me ouço ou me leio.
É incontestável que teoricamente assim é, pelo menos desde que Derrida trouxe, com a célebre différance, a questão do "suplemento" e da impossibilidade de repetição do mesmo: não há repetição, mas iteração. O texto escaparia à lei da suplementaridade se tivesse existência fora do discurso, o que não acontece.
Tudo isto é verdade do ponto de vista teórico, mas, levado ao extremo, toca o teológico, de acordo com o qual, em termos muito simples, eu sou só eu mesma para Deus. Poderia então dar expressão ao meu mais profundo anseio e dizer àquele a quem dou voz no poema («em mim fora de mim», portanto, seja no poema este "fora" seja nesse "não lugar" que é "não em mim"): quero conhecer-te como só Deus. É o princípio que se enuncia nas palavras "nada posso, porém Tu tudo podes em mim". Então realizaríamos a tríade divina em que "apenas o puro amor subsiste, nessa indiferença tão diferenciada".
Claro que é demasiado sagrado o que assim verbalizo para que o verbalizá-lo se não torne uma ainda que indesejada forma de profanação.
sexta-feira, 6 de abril de 2012
terça-feira, 3 de abril de 2012
O voo do pardal e o da águia
aqui |
Se asas tenho, são como as dos pardais. O mais alto que subo é ao cimo das árvores. Por isso nunca é panorâmica a minha visão. Quando tal me é pedido, sigo uma metodologia adequada às minhas capacidades: tomo um número restrito de temas e percorro o caminho na sua peugada. Depois junto o que recolhi, uno e cirzo. Então começo a ver um desenho, entre muitos possíveis.
aqui |
A leitura que faço é, pois, como disse atrás, comparável com o que faz o pardal: esvoaça, pousa e apanha sementes e migalhas do chão. Muito do mesmo, claro, segundo os critérios de selecção que a natureza lhe dita. Neste livro de Auster assinalei à margem do texto este fragmento da descrição que o protagonista-narrador faz da mulher com quem mete conversa, sabendo que, idealizando-a, o sobrinho a tem por perfeita:
«She was an easy person to talk to - very open, very generous, altogether warm and friendly - but, alas, not so terribly bright as it turned out, since it wasn't long before I learned that she was a devoted believer in astrology, the power of crystals, and all kinds of other New Age hokum.»
O juízo formulado é inequivocamente da personagem Nathan Glass. Auster não dá margem a confusões entre narrador e autor, de tal modo que, mesmo nas obras não ficcionais continuo a escutar - na minha própria voz, já se sabe - um narrador protagonista que em si mesmo anula a distinção entre real e ficcional, entre vida e literatura.
Reajo a este "jumping out to conclusions": «alas, not so terribly bright». Tenho de ter cuidado com o que digo, penso comigo. Não que corra riscos de passar por newager, já que lhes detesto o tique de falarem como se estivessem de posse da verdade. Mas não sou insensível, se não ao poder, certamente ao fascínio dos cristais e das pedras, assim como às cartas do Tarot (ou não reencenassem elas o tema da viagem), ou mesmo aos oráculos, astrológicos ou maias. «Not so terribly bright». Seja. Mas não penso eu o mesmo dos «devoted believers» in the positivism of Modernity? Não os olho eu como «not so terribly bright»?
Se relativamente à religião reconheço passar por vezes as raias da heresia, mais são as vezes em que as transponho no que toca à ciência que Kuhn chamou "normal". É assim que um «devoted believer» no que quer que seja me desperta tanta simpatia quanto me suscita aversão um «fanatic believer» no que quer que seja também. Por este sinal os reconheço: enquanto o primeiro faz pela positiva a apologia daquilo em que crê e que profundamente conhece, o segundo fá-la pela negativa, atacando e desmerecendo aquilo em que não crê e de que só superficial ou estereotipadamente tem conhecimento.