terça-feira, 24 de março de 2009


Será que são loucos os que correm atrás do que muitos dirão serem miragens, convictos (para seu mal... ou maior bem) de que são a verdadeira realidade. Se essa é a sua loucura, essa é também a sua solidão. São tão poucos que dificilmente se encontram neste plano da existência e cada um passará por ela irremediavelmente só. Porfiam e os anos passam...

Não há contradição em que ao mesmo tempo desejem fruir o mundo, não em obediência a um profano "carpe diem", mas em plenitude tal que o mar lhes correrá nas veias, os vestirão os céus e os coroarão as estrelas... Querem conciliar em si todas as coisas, o que é o mesmo que dizer que querem Deus.

Por isso gosto tanto dos místicos e das suas experiências transempíricas... (por serem "trans" não deixam de ser empíricas, como o sublinhou João Paulo II).



Um dia destes cruzei-me com um homem de alguma idade, de cabelos e barba brancas, muito belo (não sei se verdadeiramente o era ou se foi como o vi), que passeava um cão. Ao passar por mim cumprimentou-me (enquanto o cão veio ter comigo, efusivo). Sorri-lhe. É que vinha interromper os meus pensamentos num ponto em que fazia sentido que lhe perguntasse se desdenharia caminhar ao meu lado à beira mar a passearmos os cães e a falarmos deles e do mundo, de cada um de nós e de Deus. Provavelmente, se lho propusesse, pensaria o mesmo que eu pensaria, se fosse ele a vir-mo propor.... No entanto o que pensássemos é que estaria profundamente errado, pervertido pelos "costumes dos homens", onde Traherne via e com razão a fonte de todo o mal. Ethos e mos,moris são as palavras grega e latina para "costumes"... Nada é "costume" aos olhos de Deus: cada ocorrência é única, na sua singularidade e irrepetibilidade. É talvez por isso que evito fazer uso das palavras "ética" e "moral", quando se trata apenas de me encher de Deus e de O deixar transbordar. Ou, como Maria, de conceber Deus e de O dar a nascer.

Quantas vezes, porém, eu não disse, como ela, "sim"?

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sábado, 21 de março de 2009

"Uma intenção nua orientada para Deus... Se quiseres esta intenção resumida numa palavra... toma uma palavra breve... prende bem esta palavra ao teu coração, de modo que esteja sempre lá, venha o que vier. (...) Com esta palavra suprimirás todo o pensamento sob a nuvem do esquecimento. Tanto assim que, se alguma vez estiveres tentado a pensar o que é que é aquilo que estás a procurar, esta palavra única será suficiente resposta. E se continuares a querer pensar eruditamente sobre a significação e a análise dessa mesma palavra, diz a ti mesmo que a queres ter inteira, e não em bocados ou peças.


"A naked intention directed to God... If you want this intention summed up in a word, ...take a short word... fix this word fast to your heart, so that it is always there come what may. (...) With this word you will suppress all thought under the cloud of forgetting. So much so that if ever you are tempted to think what it is that you are seeking, this one word will be sufficient answer. And if you would go on to think learnedly about the significance and analysis of that same word, tell yourself that you will have it whole, and not in bits and pieces.

(The Cloud of Unknowing, trad. para Modern English de Clifton Wolters, 1978, pp. 69-70)

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sexta-feira, 20 de março de 2009


Ainda aqui estou e caminho. Avanço, sem dúvida. Olhando para trás, os desvios desaparecem num rasto branco, como o que deixa um navio. Olhando esse rasto diria que quem vai ao leme segue um rumo, como se visse abrir-se-lhe adiante uma estrada no mar.


É isto que me faz pensar que não sou eu o "homem do leme". Ou não sou só eu. "Eu e mais que eu", dizia-me outro caminhante como eu . Gostei desta sua formulação para o que nos ia sendo revelado, enquanto subíamos a encosta, cada um pelo seu lado, movidos por diferentes pulsões, mas re-encontrando-nos muitas vezes.

Dizia já lá ter estado, no cimo da montanha, e até acreditava que a descia ao encontro dos homens, lá em baixo no vale. Nunca gostei muito desta sua vertente "iluminada". (Um só é o Mestre.... falo disto no ponto 7 do meu outro blogue).


Muito se fala agora por aí da importância da auto-estima (a substituir o velho "amor-próprio"), mas fica tão aquém o sentido que se lhe "inventa", tão aquém do infinito alcance do amar-se a si mesmo. É que se esquece quase sempre o essencial.


Falando na primeira pessoa (para evitar o tom de ensinamento a que sou adversa) direi que o "eu" que amo em mim é o "mais que eu", a que não vejo razão para não chamar "eu interior", como S.Paulo. Conhece os meus erros, fraquezas e limitações e, todavia, continua a caminhar comigo, mesmo quando penso que o afastei de mim (ao dizer "de mim" falo do que é em mim o "eu exterior", superficial, movido por "projectos pessoais de banal felicidade").

O que de maravilhoso daqui advém é que, amando (do mesmo modo que em mim) o que é em ti "mais que tu", do mesmo modo o sei contigo, mesmo quando pensas que o afastaste de ti. Volto-me agora para ti, a quem trago no pensamento. Sim, tu que deixas lá fora Aquele que está à porta e chama e recusas a ceia que te traz. Se O fechas lá fora, como não te hás-de sentir tão só do lado de dentro, ainda que tenhas companhia?

Mais maravilhoso do que amar o que é em ti "mais que tu" é continuar a amar ao mesmo tempo e sempre o que é em ti apenas "tu", mesmo quando este tu me deixa de fora também.

É assim que o meu lago transborda na experiência de um amor que transcende toda a tentativa de classificação.

Longe está da sua compreensão quem o entende como "amor fraterno" quando é a graça divina (gr. kharis) a sua essência. Amor que pode irromper em qualquer forma de amor ou ligação eu-tu (para quê classificar o que temos?)

S. Jerónimo tentou, em lugar de traduzir agapé, encontrar em latim uma palavra mais adequada. E da palavra grega kharis formou a palavra latina charitas, que veio a ser desastrosamente tomada como derivação de carus, com todos os mal-entendidos advenientes.

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quinta-feira, 19 de março de 2009

Um outro olhar sobre o icone.

Falando dos icones "un discípulo en camino" diz no seu post de 16 de Março:

"Representan siempre a Cristo, la Virgen o los santos en la gloria (por eso el fondo es a menudo de oro) y son considerados casi como un sacramento, en el sentido de que no se limitan a describir al sujeto sino que se proponen ponerlo a uno en contacto espiritual con esa realidad. Son como “ventanas” por las que nos asomamos a la gloria, a la realidad celestial."

Desconhecia esta perspectiva que me dará agora um outro olhar sobre estas imagens que, sem saber ao certo porquê, sempre tiveram para mim um especial fascínio.

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terça-feira, 17 de março de 2009

ligações de limiar

O peregrino incógnito do blogue que tanto me impressionou diz, a terminar um dos textos mais belos que tenho lido sobre o amor entre homem e mulher: " Não são os corpos que se desejam, são os espíritos que se procuram e atraem através da espessura nebulosa dos corpos, esses santuários onde o espírito vive puro e sem mácula. Talvez não exista outro amor para além do platónico, talvez."
Quando a ligação é de limiar entre mundos, já e ainda não, abrindo-se ao Espírito que a toca e fecunda (faço uso dos termos "alma" e "espírito" como intervenientes na tríade corpo-alma-espírito), quando a ligação acontece numa dinâmica de que irrompe aquilo mesmo que a torna trina, essa ligação transcende a relação banal e não há palavra com que a classificar. Chamar-lhe "amor platónico" é reduzir o seu infinito alcance.

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domingo, 15 de março de 2009

ainda os anjos-pensamentos

Os anjos-pensamentos são intérpretes fiéis. Levam o essencial e, como não se usam de palavras, não há risco algum de mal-entendidos. Depende da "antena" do destinatário a qualidade da sua recepção, que, quase sempre, acontece fora do limiar da perceptibilidade. Só poderá advir bem para cada um dos lados que estes mensageiros sejam o fruto de um pensar cheio de graça. É da essência desta ser comunicante.

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sábado, 14 de março de 2009

thoughts are angels sent abroad

“Os pensamentos são anjos que enviamos lá fora”.

Mais de três séculos passaram sobre a escrita destas palavras. Sujeitas a carregar significados na altura estranhos, libertas dos que seriam na mesma altura óbvios, não deixa de parecer ingénua a imagem que por sua via se traça. Há muito que se banalizaram os anjos de tanto se falar deles. Torna-se cada vez mais difícil fazer-lhes qualquer referência ou alusão.

Envia-me os teus anjos... Formulo assim o pedido a que não dou voz. Um anjo mudo que envio, que por um instante conserva em si toda a energia que lhe comunico, para logo com ela se extinguir sem deixar traço. Se o prendesse à escrita despenderia toda a energia que precisa para se soltar dela e partir... Querem-se autónomos, este anjos. Recuperam a energia despendida com a que recebem lá fora para onde os enviamos. Tornam-se por vezes irreconhecíveis, de outros. Melhores? Piores?

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quinta-feira, 12 de março de 2009

Viatori

Ignoto tibi

O nome que a ti mesmo te dás e à tua escrita para sempre em espera (aonde me levou o nome de S. João da Cruz) será o que te darei. Peregrino, alma-corpo espiritual, sem dimensão terrena agora. Nesta terias, quando interrompeste a escrita, pouco mais de trinta e sete anos, precisamente como Thomas Traherne, quando tão cedo deixou infinitamente em aberto a sua.
Escolhi a "missa sine nomine" de Palestrina. Pareceu-me adequado à circunstância de te inominares, como o autor de Cloud of Unknowing.
O primeiro movimento foi de tomar Tomás Luís de Victoria. Abri a caixa, mas encontrei-a vazia (tê-lo-ei guardado com um outro, por engano). Era uma missa de requiem (adequada, portanto). Mas também um Magnificat (e o meu maior desejo seria o de poder sustentar o estado de espírito de que irrompem as palavras que anseio voltar a entoar). E era, no fim, a missa "O quam gloriosum" (como acabei por dar, não o querendo, sentido ao que em si mesmo o não tem, vejo configurada uma tríade de mistérios).
Estás aqui ainda, mesmo que já não estejas. Ainda e já não, é apenas a enunciação inversa do "já e ainda não" da "comunicação dos santos"...

Este post foi-me suscitado por um blogue,que me impressionou muitíssimo, de um anónimo que terá deixado (tão cedo) este mundo.

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sexta-feira, 6 de março de 2009

seuil

“Statues dressées en limites instauratrices d’un ailleurs qui n’est pas autre part, ils le produisent et le défendent à la fois. Ils forment de leur corps et de leurs textes une frontière qui divise l’espace et transforme leur lecteur en habitant de campagnes ou de faubourgs, loin de l’atopie où ils logent l’essentiel. Ils articulent ainsi une étrangeté de notre propre place, et dond un désir de partir au pays. À mon tour, semblable à l’”homme de la campagne” dans Kafka*, je leur ai demandé d’entrer. Au commencement le gardien répondait: “C’est possible, mais pas maintenant” (…)
“Il (le gardien) est étranger, lui aussi, au pays qu’il trace en marquant un seuil. Faut-il dire la même chose de ces mystiques?

Certeau, Michel de, 1982, la fable mystique, 1. Paris: Gallimard, pp.10-11.

* Franz Kafka, “Devant la loi”, in Oeuvres complètes, Cercle du livre précieux. Gallimard-Tchou, 1964. t.4. pp. 165-166.