sábado, 31 de março de 2012

livre arbítrio vs destino

A questão do determinismo vs liberdade, ou destino vs livre arbítrio, parece-me comparável à de Deus jogar ou não aos dados ou à de o fotão ser uma onda ou uma partícula. Tudo depende do que se queira ver, o que à partida parece pesar a favor do não determinismo, que não tem necessariamente de se equacionar com o acaso, senão com a liberdade. 
Quanto mais penso nestas coisas mais acredito numa realidade multidimensional que infinitamente extravasa a nossa capacidade de compreensão. É por isso que tomo como metafóricas todas as teorias explicativas e faço a minha escolha segundo um critério em que o estético pesa tanto ou mais que o plausível.
Claro que, à excepção de uma só, as nossas escolhas nunca são inteiramente livres, sendo como são  sempre fruto de uma quase infinita complexidade de relações de causalidade e de mútua implicação (digo quase infinita pois que ao sempre reduzido número das que conhecemos - e que são as que vemos emergir na «ordem explicada» -  há que juntar a multiplicidade daquelas que, permanecendo na «ordem implicada»,  não deixam de pesar). 
A excepção de que falo só a posso colocar numa linguagem infantil: dizer "sim" (ou "não") a Deus. Não se trata de uma opção tomada uma vez por todas, mas que podemos ter de tomar a qualquer momento. Podemos dizer que fomos destinados a seguir o caminho que fazemos?
Maria foi inteiramente livre, mesmo tendo feito a escolha que fez ainda antes de ser formada no seio da sua mãe, de onde a não hesitação no momento em que se lhe coloca. A pergunta que levanta não vem de qualquer ponderação da resposta a dar, mas de uma muito humana curiosidade. Esta assume a forma, não de um "porquê" (o anjo adianta-se-lhe com a questão da graça e no magnificat ela enuncia-a logo de início com as palavras «porque olhou para a sua humilde serva»), mas de um "como", já que o que lhe é anunciado colide com o modo como vê funcionar a natureza. Mas nem mesmo a natureza está determinada a funcionar como funciona. Pode, inesperadamente, funcionar de outro modo, imprevisto e (im)possível. O milagre, o que rompe com o estado de conhecimento do mundo, é sempre indiciador da essencial liberdade por que se define o espírito, que «sopra onde quer». A intervenção do espírito desestabiliza a ideia de destino, já que não há destino para o espírito, que nada pode prender. 
Vejo as profecias vetero-testamentárias como textos poéticos, apelando, como tal, ao porvir - e o porvir partilha da plena liberdade do espírito - que lhes «inventa» o "já" que se cumpre.
Resta ainda a comunicabilidade entre as várias dimensões da realidade a pesar a favor da noção da vida como via que se traça e o crucial papel do discernimento dos espíritos neste traçar-se do mesmo modo o atesta. Por último, há ainda a experiência pessoal de cada um e o modo como a olha consoante o que quer ou espera ver.

domingo, 18 de março de 2012

«And then it’s this easy» ( Ingmar Bergman, Saraband)



No que têm sido estes dias de retiro forçado, retomei Ingmar Bergman (os filmes que consegui reunir). Ontem vi Saraband . Destaco este passo (a partir da legendagem, em inglês):

«I think a lot about death these days.
I think, one day I’ll be walking the forest path towards the river. It is an autumn day, foggy, no wind. Absolute silence. And then it’s this easy.
Then I see someone over by the gate, approaching me (…). And she is walking towards me. Anna, over by the gate. And then I realize I’m dead. Then the strangest thing happens. I think, is it this easy? We spend our whole lives wondering about death and what comes after. And then it’s this easy.»

Tenho tanto esta percepção. Sempre pensei na morte, como sempre pensei em Deus e no amor. Nunca separei a morte da vida, por isso dizer morte é dizer necessariamente vida.
Se pensar envolve, tal como falar, uma relação e esta implica pelo menos duas partes intervenientes, a outra tranquilizou-me sempre como se me dissesse: «A seu tempo verás como é tudo tão simples». Digo hoje que escutaria uma terceira, a que, como espírito, sopra onde quer, e se manifesta gerando a relação de que nasce. Que seja santo o que irrompe da relação entre mim e mim é o que posso desejar. Tanto como da relação que com o outro – dentro fora de mim – aconteça. O outro, «privilegiado», sim, consoante esta mesma medida.

sábado, 3 de março de 2012

«when creation shows so much, how radiant must be the source!»

Esta manhã trouxe-me uma resposta, afinal tão simples, a uma pergunta que me fazia a mim mesma e a que nunca conseguira inteiramente responder. Parecia-me sempre refugiar-me em evasivas. E foi ainda a cena do filme (de que falo no último post) que a trouxe. É que a personagem que começa a proferir o salmo antecede-o com a exclamação (as legendas estão em inglês e a elas recorro):
«Ah, when creation shows so much,
how radiant must be the source!»
Parece, de tão ouvida e enunciada, quase trivial a proposição: a partir da criação chegar ao Criador. Se a criação é o poema de Deus, como não será o Poeta! Na cena do filme, o jovem que se assume ateu não deixa de desfrutar a beleza circundante por não se colocar a questão do autor dela.
Assim acontece na literatura. Só muito recentemente e só com respeito a alguns e raros textos / poemas é que comecei a sentir uma até então nunca sentida atracção pelo autor. Não, porém, numa perspectiva psicologista ou historicista (pela qual sempre senti uma visceral aversão), mas no espanto (wonder), deslumbramento mesmo que a exclamação enuncia: se isto é tão maravilhoso, se me toca tanto, se me apaixona assim, como não será quem o escreve?
Aconteceu, por exemplo, com A Nuvem do Não Saber, de autor desconhecido. Quis, sim, quis muito chegar ao autor. Não, de modo algum, saber dados biográficos que explicassem a obra. Não precisaria e muito menos desejaria explicações para o que tudo diz. Buscar o autor é buscar o mistério que se me manifesta no texto como o mistério de Deus se me manifesta na natureza - e não preciso de grandes e deslumbrantes paisagens. Uma plantinha, um bichinho me basta.

Ou este insecto para mim "totémico" (na linguagem de uma amiga, Fernanda Maio, que simpatiza com o shamanismo), confundível com uma abelha. Em inglês hoverfly, é para mim simplesmente "mosca das flores". E ela fala-me d' Ele, da fonte em que bebe. Ou Ele fala-me através dela, do seu inesperado aparecimento ou singular comportamento. Um sinal. Um traço. Como não será quem o deixa?
Pode parecer heresia, mas algumas obras da mão humana fazem-me sentir algo assim. Ou não estivesse no poeta o Poeta. Ou não fosse o encontro a três. Como não gostaria de ouvir o que porventura  lhe dissesse - também a ele - a minha "mosca das flores", um símbolo agora, neste contexto.

a cena do poema-salmo

O poema que coloquei no último post (uma pesquisa na net levou-me ao  texto original) é o salmo de Johan Olaf Wallin (1779-1839) que integra a cena que é para mim  - e por via desta integração -  a mais bela do filme de Ingmard Bergman Smultronstället . O título em português - "Morangos silvestres" -  dá conta do qualificador e omite o qualificado - o lugar, o sítio (que faz o sentido, uma vez que, como alguém comenta, se trata, na língua sueca, de uma expressão metafórica  para «um lugar guardado em segredo no coração»). 
No you-tube encontrei um vídeo com a cena em que as palavras do poema são ditas de core, literalmente do coração, integrando o que é para mim não apenas a resposta à pergunta feita, mas um deslumbrante sinal,  mais do que da Sua existência (o termo diz infinitamente pouco), da Sua «demasiada realidade» ( mais uma vez, T.S.Eliot). Onde estiverem dois ou três... O salmo guardado por cada um no coração torna-se símbolo, no sentido literal do termo, no ser tomado e continuado por cada uma das três personagens, que assim assumem o que as une e que lhes revela desse modo essa porventura até aí  ignorada união. Perdoe-se-me a pobreza deste meu comentário com que só pretendo dizer o que sinto, sem quaisquer pretensões críticas. O vídeo, infelizmente sem legendas, dá para ouvir e fruir a pura musicalidade do poema-salmo:


quinta-feira, 1 de março de 2012

Var är den Vän?

Var är den Vän? 
(Where is the Friend?)

Var är den vän, som överallt jag söker ?
När dagen gryr min längtan blott sig öker ;
när dagen flyr, jag än ej honom finner,
fast hjärtat brinner.

Jag ser hans spår, varhelst en kraft sig röjer,
en blomma doftar och ett ax sig böjer,
ut i den suck jag drar, den luft jag andas,
hans kärlek blandas.

Jag hör hans röst, där sommarvinden susar,
där lunden sjunger, och där floden brusar ;
jag hör den ljuvast i mitt hjärta tala,
och mig hugsvala.

Ack, när så mycket skönt i varje åder
av skapelsen och livet sig förråder;
hur skön då måste själva källan vara,
den evigt klara.


English translation by Rustan Gandvik and Leonard Nasman:

Where is the friend, that everywhere I'm seeking?
When dawn is breaking my yearning is increasing.
When day is gone, he still is whom I'm seeking.
Though my heart's burning.

I see the signs, I see his power showing,

in fragrant flowers, in nature's music singing.
And with my sigh, the air that I am breathing,
is filled with his love.

I hear his voice, where summer winds are blowing,

where trees are whispering, and streams are gently flowing.
I hear it sweetly when to my heart it's speaking,
to comfort me.


And now with so much beauty all around me,
and all creation, and nature to astound me,
how beautiful must be the place he leads us,
to bright and clear light.