domingo, 31 de maio de 2009

"a peregrinação humana é um caminho trinitário"

Transcrevo para aqui as palavras de R. Panikkar em que encontro o conforto de um "confirmo" ao que pressentia conciliar-se (impossivelmente) em mim sem que fosse capaz de o explicitar e, desse modo, o assumir: "... a plenitude humana requer o cultivo harmónico das três formas de espiritualidade. Qualquer exclusividade e, acrescentaria mesmo, qualquer superioridade pretendida por alguma delas desequilibra-nos e desumaniza-nos (...) a senda da peregrinação humana é um caminho trinitário" (op. cit. p.77).
Trindade é o próprio caminhante, assim como o ponto no horizonte para que se orientam os seus passos. Trina é também a relação com o outro, "especial" em virtude disso mesmo. A poesia nasce da dinâmica trinitária que envolve o tu e o eu, a vida e a escrita, o silêncio e a palavra, e o que unificando cada par assim os distingue. Trino cada um destes nas suas dimensões mutuamente implicadas.


Respira em nós Santo Espírito

Domingo de Pentecostes


Hoje é domingo de Pentecostes. O dia em que os Judeus celebravam a entrega da Lei a Moisés é o dia em que celebramos o Espírito Santo de Deus, o Espírito do Filho em religação com o Pai. "Soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo" (Jo 20:22)

Escreve Raimon Panikkar: "Se tomamos a sério o apofatismo do Pai, só poderemos dizer que o Filho é o Tu do Pai, sem sequer poder acrescentar-se que o Pai é um Eu."
E mais adiante: "Se o Pai e o Filho não são dois, também não são um; o Espírito une-os e distingue-os ao mesmo tempo. Ele é o vínculo da unidade; o nós no meio, ou melhor, no interior."

Continuo a citar: "O Pai não tem nome próprio porque está muito para além de todo o nome, inclusive da designação de Ser. O Espírito não tem e não pode ter nome próprio, pois, em certo sentido, está aquém de todo o nome, inclusive do de Ser. O Ser e os seres - e, por fim, toda a existência - pertencem ao domínio e à esfera do Filho."

Não se pode orar ao Espírito, diz ainda, só se pode orar no Espírito. É o Espírito que ora em nós. A oração no Espírito não tem dimensão ideacional.

sábado, 30 de maio de 2009

"Dilige, et quod vis fac"

"Agir como se contemplasse". Medito nestas palavras que dizem a entrega nas Suas mãos de tudo o que digo ou faço, o que seria tão fácil se plenamente Lhe entregasse tudo o que penso ou sinto. Sim, a entrega, o pleno abandono nas Suas mãos começa aqui, o resto vem por acréscimo.
Já é suficientemente longa a caminhada para poder reconhecer que sempre o início de uma nova fase foi precedido de uma entrega desta natureza, só ultimada quando plena. Sem a plena entrega do sentir, nunca será plena a entrega do pensar-falar-agir. Direi então que é preciso sentir como se não sentisse. Entregar todo o sentir nas Suas mãos dizendo-Lhe: "Liberta-me Senhor no Teu Espírito". Acolher em paz o que acontece, querer não querer. Confiar que mais quererei o que virá, mesmo desconhecendo ainda o que possa ser.
Assim tem sido e sempre Ele me espanta sem me espantar, me maravilha sem me atemorizar. Ante o que assim sobrevém por Sua mão, queria não olhar os frutos da acção e prosseguir. Um "fare forward" ao sabor do Espírito, "agindo como se comtemplasse". Porque hei-de temer não dizer ou fazer o que quero e dizer ou fazer o que não quero, se sei que "o Amor lança fora o temor", incluindo este meu receio? Quero querer o que Ele quer. Evoco Santo Agostinho, disposta a seguir a sua máxima: "ama e faz o que quiseres".

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Der Lindenbaum



Transcrevo as palavras da minha irmã, que faço minhas nesta ocasião:

"A tília, a nossa tília, acho que foi plantada pela nossa tia avó. A tília é aquela cuja sombra o meu pai tanto apreciava nos dias de Verão quentes e sem aragem e que permanece frondosa assistindo à sucessão de gerações. A tília rodeada de árvores baptizadas por meu pai com nomes próprios, dos filhos , dos netos, dos bisnetos.

Esta canção foi aqui postada a pensar na minha mãe, que resiste ainda ao apelo da tília.

Que a viagem de inverno da minha mãe seja serena é a oração que faço, ao som do piano que ela tão bem tocava."



DER LINDENBAUM

Am Brunnen vor dem Tore, da steht ein Lindenbaum,
ich träumt' in seinem Schatten so manchen süßen Traum;
ich schnitt in seine Rinde so manches liebe Wort;
es zog in Freud' und Leide zu ihm mich immer fort.

Ich mußt' auch heute wandern vorbei in tiefer Nacht,
da hab' ich noch im Dunkel die Augen zugemacht,
und seine Zweige rauschten, als riefen sie mir zu:
Komm' her zu mir, Geselle, hier find'st du deine Ruh!

Die kalten Winde bliesen mir grad' in's Angesicht,
der Hut flog mir vom Kopfe, ich wendete mich nicht.
Nun bin ich manche Stunde entfernt von jenem Ort,
und immer hör' ich's rauschen: Du fändest Ruhe dort!

Translation:

THE LINDEN TREE

By the fountain outside the town gate stands a linden;
in its shade I dreamt many a sweet dream;
in its bark I cut a loving word;
I was drawn to it continually in times of joy and pain.

This night, too, I had to go past it, at dead of night,
dark though it was then, I kept my eyes closed,
and its branches rustled, as though they were calling to me:
"Come to me, my friend; here you will find peace!"

The cold gusts blew straight into my face,
the hat flew off my head, but I did not turn back;
now I am many hours distant from that place,
and still I hear a rustling: "You would have found peace here!"


Category: Music
Tags:
Franz Schubert Winterreise Der Lindenbaum Thomas Quasthoff Daniel Barenboim

Nada te turbe

sábado, 16 de maio de 2009

"in eine Wüste ziehen"

Oriento o meu desejo para além dos sentidos que irrompem no acto de ler estes poemas. Oriento-o para o que além e acima destes sentidos, o além-sentido de todo o sentido (übersinnliches Sinn), sobrevindo, os suspende. É essência da verdadeira poesia isto que sobrevém. Mas o que é "isto"?
"É na luz que cresce a escuridão, é no som que cresce o silêncio. É no oásis que se eleva o deserto", leio. Escuridão, silêncio e deserto ardente, esta suspensão de todos os sentidos e, com eles, de todo o saber. Só fica, cego e surdo, o puro desejo que, como a sede de infinito e de eternidade, de si mesmo se sustenta e sacia sem nunca se saciar. O poético e o místico, enquanto palavra e silêncio, implicam-se mutuamente numa dinâmica que os faz, com o que sobrevém, um só. O verdadeiramente poético é místico e o verdadeiramente místico é poético e o que faz essa sua essência acontece e deixa rasto.
Este desejo não vem do eu exterior como não vem do eu interior, mas do que a um e a outro os transmuta em si. Falo do "terceiro excluído"?

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Abyssus abyssum invocat. Angelus Silesius pergunta-se qual o mais profundo, se o abismo do seu espírito, se o de Deus.
Não estará o perigo em que, à força de querer ver a luz (e, à luz dela, a rota), o espírito a crie a partir de si mesmo, seja presente, seja ausente? A noite e o deserto não serão (ainda que podendo como tal ser tomados) a substanciação desta ausência, mas a manifestação da luz incriada na forma da mais pura força de atracção. Que perigo imenso não representa toda a luz criada se o espírito se não orientar para além dela, para a "überlichtiges Licht" (a Luz do Além-da-luz) que se manifesta na mais profunda escuridão do que no espírito responde uma vez "tocado" ("wenn berührt einmal"). O que, orientado para um sentido acima a além de todo o sentido (Übersinnliches), responde e chama podê-lo-ia verbalizar como "übermenschlicher Mensch" (o humano do além-do-humano).
O essencial não está, o essencial sobrevém (a própria gramática decorre e sustenta-se nesta revelação).

quinta-feira, 14 de maio de 2009

chegar ao original

Para quem já fez a aprendizagem de uma segunda ou terceira língua e pretende conhecer uma nova apenas com vista à compreensão, será pura perda de tempo submeter-se à sua aprendizagem nos moldes convencionais. Agamben, em O tempo que resta, coloca em apêndice os textos originais (em grego) que cita ou comenta, com a tradução literal entrelinhas. Foi durante séculos possível aprender/ensinar uma língua nesta base (do ponto de vista do ensino, como é óbvio, os aspectos lexicogramaticais foram sendo objecto de enfoque e sistematização segundo a sua importância em termos estruturais e assim surgiram as gramáticas). Devo admitir que me é muito grata a ideia de (como em Pentecostes) todos compreenderem todas as línguas, expressando-se cada um na sua.
Traduzo neste ensejo os epigramas de Angelus Silesius que coloquei num post anterior.
Ao ler um poema, ainda que a minha leitura seja silenciosa, estou a dar voz (a minha, ainda que lhe possa dar diferentes e múltiplas modulações) não ao autor, mas ao Poeta enquanto "sujeito da enunciação". Deste modo o texto de novo se torna discurso e discurso vivo. É assim que "invento" (no sentido etimológico do termo) aquele que "fala" na voz que lhe dou. Falará, assim, "a várias vozes" como diz Derrida a fechar "Psyché, l'invention de l'autre", tantas quantas as vezes que o texto se tornar discurso e cada enunciado nova enunciação.
Enunciei de uma forma muito linear a questão que levantou a controvérsia em torno da (pretensa ou não) "morte do autor", com tudo o que possa ter de falacioso. Na verdade, por esta ordem de ideias, cada eu se tornará, no momento em que se expresse, sujeito da sua enunciação, diferente de si mesmo em silêncio. Por outras palavras, eu só sou eu enquanto não me expressar. Expressando-me, torno-me imediatamente outra de mim. E se o que digo ficar gravado ou escrito, até para mim mesma me torno outra no momento em que me ouço ou me leio.
É incontestável que teoricamente assim é, pelo menos desde que Derrida trouxe, com a célebre différance, a questão do "suplemento" e da impossibilidade de repetição do mesmo: não há repetição, mas iteração. O texto escaparia à lei da suplementaridade se tivesse existência fora do discurso, o que não acontece.
Tudo isto é verdade do ponto de vista teórico, mas, levado ao extremo, toca o teológico-místico : em termos muito simples, eu sou só eu mesma para Deus. Poderia então dar expressão ao meu mais profundo anseio e dizer ao eu a quem dou voz no poema (em mim fora de mim, portanto, seja no poema este "fora", seja nesse "não lugar" que é "não em mim"): quero conhecer-te como só Deus. É o princípio que se enuncia nas palavras "nada posso, porém Tu tudo podes em mim". Então reencontraríamos a tríade divina em que "apenas o puro amor subsiste, nessa indiferença tão diferenciada".

domingo, 10 de maio de 2009

C.W. 1:68. Ein Abgrund rufft dem andern.
Der Abgrund meines Geists rufft immer mit Geschrey
Den Abgrund GOttes an: Sag welcher tieffer sey?

1:132. Das Hertze.
Mein Hertze weil es stäts in GOtt gezogen steht /
Und jhn herwieder zeucht / ist Eisen und Magnet.

5: 130. Der geistliche Magnet und Stahl

GOtt der ist ein Magnet / mein Hertz das ist der Stahl:

Eß kehrt sich stäts nach jhm/ wenn ers berührt einmahl.

sábado, 2 de maio de 2009

Magnificat

À luz da nova luz

No Domingo de Páscoa pressenti que a noite que me envolvia e se prolongava, noite do espírito, sim, não do corpo e da alma, por já ir tão longa, nisso mesmo anunciava a proximidade da manhã e com ela de uma nova etapa nesta caminhada (que desejo que seja) de luz em luz: "há que sair de uma luz para na outra entrar", cito mais uma vez Angelus Silesius ("Man muß auß einem Licht fort in das andre gehn"). Recapitular não é rever, mas ver o percurso realizado à luz da nova luz e alcançar assim uma consciência mais clara da transformação. Sinto-a em todo o meu ser e, diante dos teus poemas de tão singular beleza, viandante, só o puro olhar responde em mim.