domingo, 28 de fevereiro de 2010

do monte Tabor ao poema 77

Hoje o Evangelho foi a transfiguração no monte Tabor. É um daqueles passos em que mais pressinto, pela inutilidade de qualquer esforço de aproximação da compreensão, que não seremos nós que nos aproximamos dela, antes é "ela" que de nós se aproxima e porventura nos "toca".

Os místicos falam de "iluminação" quando, por gratuito dom divino, nela se perdem de si mesmos, cegos da imensa luz em que nada apreenderam senão que "lá estiveram" (sem que possam saber "onde" ou "quando"). Serão tais momentos da natureza da "demasiada realidade" que "o género humano não pode suportar"? Eliot reitera na voz do pássaro o perigo que Rilke vê na demasiada aproximação do anjo. Porém, o "toque" subtilíssimo, como um aflorar da pele, que estremece de alegria e espanto, é já evidência bastante de que o que nos toca quando tocados pela "compreensão" é da natureza do amor que "lança fora o temor". E que outro amor senão esse nos move a prosseguir?

No poema "A tua mão" não são ecos de outros textos que acolho para a seguir os descartar, (como tenho feito) na atracção do esplendor do poema despojado de todas essas vestes que ,por belas ou preciosas que sejam, sempre estarão a mais (colocarei no outro blogue um post com um poema de Traherne sobre o corpo nu).
É à pura atracção desse esplendor que me entrego flutuando ao vento sem resistência como a lágrima ou a folha que cai, no doce desejo de tocar no ser tocada. Wonder and delight. Pura fruição do poema, de que as palavras, sílaba a sílaba despidas, dão a sentir o corpo, que, se delas se forma na sua mais completa nudez, também as transcende na tríade em que o poema acontece. E com ele e nele a luz, o vento, as lágrimas, as folhas que caem E essa mão que se dá.
Deparo-me sempre com o mistério dos dois infinitos que no poema se tocam tocados pela compreensão. Será dela esta mão "aberta e pura / tão leve / e tão nua"?
Em vez do link transcrevo o tão belo, tão leve e suave, poema 77 do Viandante, "A tua mão", na sua perfeita e resplandecente nudez:

"a luz nesse flanco
ilumina
o ritmo
com que despes
as palavras

sílaba a sílaba
oiço-lhes o vento
e em cada lágrima
cai uma folha
onde flutua
a tua mão
aberta e pura
tão leve
e tão nua"

sábado, 27 de fevereiro de 2010

"The Lord bless you and keep you"

Ao fim de uma semana agitada em que os dias voaram, posso finalmente "sair sem ser notada / estando já a minha casa sossegada". Passe o paradoxo, "sair" para ir onde estou , fiel que sou à ideia que me é tão querida de que não há divisões na vida quando ela é perspectivada como "via" que é ao mesmo tempo e a cada momento o "aonde" ela conduz . Feliz quando, porventura, ligando os "momentos dentro e fora do tempo" como pontos no espaço, emergir o sentido da mais feliz direcção da viagem, na perfeita equilateralização da tríade das formas pronominais Tu/tu-eu, à Sua imagem.
Do belíssimo poema 77 do Viandante, intitulado "A tua mão", diria que no "tocar"-me me envolve no "meio", humano e divino, que, mais do que "uma atmosfera que respirasse", me deixa pressentir (confirmando pressentimentos anteriores) o "modo de ser" destes céus e desta terra numa nova claridade. Claro que só consigo passar à reflexão/verbalização depois de um tempo mais ou menos longo de puro sentir. Para do mesmo dar conta é na música que encontro a voz que por mim fale.
Antes de prosseguir e entrar no jardim por esta porta que me é aberta e que o anjo fechará atrás de mim - ou fosse possível voltar-se atrás quando se é "tocado" assim - deixo à mão que assim me toca o que por mim podem dizer as palavras tornadas música neste canto e nesta voz.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

So nimm denn meine Hände





1. So nimm denn meine Hände
und führe mich
bis an mein selig Ende
und ewiglich.
Ich mag allein nicht gehen,
nicht einen Schritt:
wo du wirst gehn und stehen,
da nimm mich mit.

2. In dein Erbarmen hülle
mein schwaches Herz
und mach es gänzlich stille
in Freud und Schmerz.
Lass ruhn zu deinen Füßen
dein armes Kind:
es will die Augen schließen
Und glauben blind.

3. Wenn ich auch gleich nichts fühle
von deiner Macht,
du führst mich doch zum Ziele
auch durch die Nacht:
so nimm denn meine Hände
und führe mich
bis an mein selig Ende
und ewiglich!



Trad.:
1. Assim toma pois as minhas mãos
E leva-me
Até ao meu ditoso fim
E eternamente.
Sozinha não desejo ir
Nem um passo:
Onde fores e estiveres
Aí me toma contigo.

2. Na tua compaixão envolve
O meu frágil coração
E fá-lo de todo sereno
na alegria e na dor.
Deixa descansar a teus pés
A tua pobre filha / o teu pobre filho:
Fechará os olhos
e acreditará cegamente.

3. Ainda que nada sinta logo
Do teu poder,
Tu levas-me sim à meta
através da noite também:
Assim toma pois as minhas mãos
E leva-me
Até ao meu ditoso fim
E eternamente!

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

oração de quietude e silêncio

Olhando a descontinuidade, a noção de "componente" desfaz-se para dar lugar à de "elemento", em si mesmo um todo uno, à semelhança do todo do tudo no ponto em que o tempo e o não tempo se tocam.

Um poema oferece-se como, em si mesmo, um todo desta natureza. Tomo, do Viandante, o poema 76, "Terra do esquecimento". O que se configura cria a dimensão em que, "acontecendo", é. Diferentemente das imagens de scrying, o que se configura nasce de uma relação, em si mesmo um mistério, com o "outro" na sua transcendência não imanente: o "outro" que é "fora de mim", ainda que só "em mim" o possa "tocar", sempre, porém, nesse ponto de onde o "terceiro" irrompe, inapreensível.

Estão, assim, criadas as condições propícias à interpretação, à meditação, à glosa. Diria que sempre estes poemas convidam à oração. Na imagem que me é dada, aquele que S. Paulo declara "herdeiro do mundo" confronta-se com o que vê dessa herança: "ervas e tormentos". E, como um rei assume o poder, assim no mesmo gesto, ele assume a cruz:

"a trémula mão
ergue-se
sobre um império
de ervas
e tormentos."

"A trémula mão / ergue-se": "Na minha fraqueza está a minha força", diz ainda S. Paulo. Por que poder senão pelo do "Espírito"? E o gesto é ao mesmo tempo de louvor.

Tudo concorre no "momento" assim reconfigurado para fazer dele uma reiteração do "momento no jardim das oliveiras". Descem os anjos a comfortá-Lo. Ainda há tão pouco tempo meditava sobre este passo e ligava o "consolo" dos anjos ao Espírito, a restabelecer a "Trindade" do "Deus uno e trino", que nos faz "à Sua imagem". Que assim seja no "momento derradeiro". Neste pensamento, o fecho do poema faz-me estremecer:

"e no súbito fulgor
um anjo anuncia
o voo
de um pássaro
na terra
do esquecimento".

E neste estremecimento todas as imagens e interpretações se desfazem e a oração que se refaz é de silêncio e quietude: "voo na terra do esquecimento".
Que o anúncio do anjo seja o deste momento de oração em que Ele está em nós e connosco, no nosso encontro no poema.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

ainda o re-

Reflectir envolve sempre uma reiteração do que já foi pensado ou mesmo dito, que, no processo de uma nova verbalização, faz vir à "ordem explicada" muito do que, entretanto, foi passando à "ordem implicada" e que re-vem "agarrado" ao que se reconvoca. Quanto mais simples parece uma teoria (como David Bohm consegue fazer parecer a sua, basicamente em torno do "holomovimento do implicar-explicar"), mais facilmente o seu modelo assume a força do símbolo e propicia o "toque" da "compreensão".
É este movimento "re-" (Morin desenvolve a sua teoria na base deste prefixo, mas apenas me quero cingir ao sentido etimológico de movimento em sentido contrário ao efectuado, que desfaz para refazer, desconstrói para reconstruir, sempre de um modo diferente) que dá a ver a vida como uma continuidade feita de descontinuidades, por isso mesmo se prestando a e até suscitando uma sempre outra "recomposição" com a inclusão, por vezes determinante, de "componentes", antes não apercebidas.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

a relação privilegiada

Tenho usado o termo "recapitulação", no sentido em que o prefixo re- significa movimento em sentido contrário ao efectuado, um movimento só possível no presente e a partir do presente, portanto, um movimento para diante em favor do que adiante se coloca e que é, ainda e sempre, o caminho, a via. "Man was born to meditate on things". E que "coisas" serão mais dignas de se meditar do que a nossa relação com Deus, com nós mesmos e com "o outro"?
Quanto discordo de que se faça anátema de um procedimento que cada vez mais se me afigura como via de aperfeiçoamento neste plano mais denso da existência. É assim que recapitulo, não só a evolução da minha relação com Deus e comigo mesma, mas também a minha relação com o "outro", o "próximo", no sentido de aquele que Lhe aprouve que se aproximasse de mim ou que eu dele me aproximasse, para aperfeiçoamento de ambos. Tal é a "relação privilegiada".
Sei que se, por minha culpa, me esquecer d'Ele e me centrar em mim mesma, logo essa relação privilegiada se desfaz e, envolvida pela noite, não tarda que caminhe "entre abismos de amargura". Se tempos houve em que nada sabia disto (apenas porventura um pressentimento muito vago), sempre, porém, Ele guardou os meus passos e me fez avançar, nesta via, de claridade em claridade. E o maior bem será sempre o de poder, de alguma forma, dar ao "outro" todo o bem que dele me advém numa relação que Ele privilegie assim.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Regressar progredindo: Pilgrim's progress como caminho de Emaús

Inerente à poesia é também a ligação profunda, diria mesmo arquetípica, entre o semiótico e o semântico. A assonância e a aliteração são de tempos imemoriais, remontam a uma Urschrift, a uma escrita anterior à fala, do tempo pré-verbal da infância da humanidade em que se falava e cantava "em línguas" como os anjos e as aves . Estou a levar longe demais um momento poético do ensaio de Herder, é verdade, mas esta perspectiva infantil, nem evolucionista, nem criacionista, é sedutora: religiosa no sentido etimológico em que faz a religação entre a terra e o céu. Traherne advogá-la-ia. E porventura também agradaria ao Viandante.

Prosseguindo nesta orientação, diria que, nos seus poemas, indissociável da luminosidade das imagens (mesmo quando me "dão a ver" a noite e as sombras), há um como que canto em línguas feito da beleza musical dos sons que fecundam as palavras que os geram. Se estou a parafrasear J.M. André (no prefácio à tradução de De visione Dei) dizendo do som o que ele diz do silêncio, também e ao mesmo tempo, o que diz do silêncio (daquele que vem do que há de mais fundo em nós, de tão fundo que é ao mesmo tempo fora de nós) se aplica aqui.

Não é estranha a tudo isto a poderosíssima força do arquétipo - como o é e por excelência a água (que inunda o poema e dele transborda). Assomando do profundo, do que "já não provém da experiência e da hereditariedade pessoais" (Jung) "não nos afecta só mentalmente, move os nossos centros emotivos mais profundos" (assim fala D.H. Lawrence sobre o mito e o símbolo).
O fascínio, porém, só mesmo o poema o pode dizer, sendo-lhe inerente esta trindade dinâmica de letra, sentido, espírito, à semelhança da divina. As respectivas ciências (semiótica, semântica, e... nenhuma havendo do "espírito", candidatar-se-ia a hermenêutica?) teriam de se relacionar do mesmo modo se delas se esperasse explicar o fascínio da poesia.

O fascínio do poema "Filho pródigo" é ao mesmo tempo o do templo de que falei no meu último post, onde, atravessado o átrio, quisesse afastar a cortina do "santo dos santos" e a água me inundasse, levando-me "a esses dias / onde tudo era / água"... "a manhã / que abria uma rosa /no quintal ... as horas / que passavam / no esquecimento / de passar ".... Levando-me aonde vou, num regresso que é progresso: "é como regressar /a essa água / que de ti corre / todos os dias".

Se faço das palavras da Cananeia a minha oração quotidiana - "Senhor, dá-me dessa água para que nunca mais tenha sede", não menos a beberei das mãos daquele em quem Ele a faz jorrar: "e do seu seio jorrarão rios de água viva". Onde, mais viva do que num poema , a encontraria? Será heresia dizer que, se me a deu já a beber das Suas mãos (que é o "momento da "compreensão" senão beber dessa água?) será da Sua vontade que, nesta caminhada, me faça prosseguir dando-ma a beber da fonte em que a faz brotar?

Consentir-me-á o Viandante que transponha para aqui o poema, se me autorizou a que o acompanhasse na viagem, refazendo (re- no mesmo sentido que o re- do segundo "regressar "do poema), o "caminho de Emaús".

"regressar a esses
dias
onde tudo era
água –

a manhã que abria
uma rosa no quintal
as horas que
passavam
no esquecimento
de passar –

é como
regressar a essa
água
que de ti corre
todos os dias "

sanctum sanctorum

O "momento da compreensão", a "hora em que o ser e o compreender coincidem", nas palavras do Viandante, suscita-lhe um pensamento que toca um tema paulino - Rom 4:13 "haeres mundi" - que Traherne abraçou de corpo e alma. Escreve o Viandante: "Mas será que compreendo tudo isso? Não, não compreendo. Todos dizemos coisas que não compreendemos. Quando o compreender, poderei dizer que tenho tudo e que sou o Rei do mundo."

Escrevi no último post mais uma reflexão a servir de novo preâmbulo ao que poderia dizer sobre o poema "Filho Pródigo" (e também sobre "Terra do Esquecimento") que não fosse ao mesmo tempo uma profanação, na consciência de que me não contento em ser admitida no átrio pretendendo entrar no "sanctum sanctorum" deste "templo": ser tocada pelo maior mistério; tocá-lo também.
Em termos de lógica, que o particular seja tocado pelo universal e, tocando-o, ser por ele envolvido tanto quanto o envolve (tornar-se a gota de água que contem o mar de que falam os místicos) não levanta problemas; o caso é outro tratando-se de dois particulares: só tocados um e outro pelo universal se poderão verdadeiramente tocar nesse ponto. Saindo da frieza gélida da lógica, em vez de "universal" direi "compreensão", a "compreensão" que, tocando a palavra, a torna poema, lugar privilegiado para um encontro face-a-face com o mistério do "outro". A imagem que me é dada é a do vidro de visão num só sentido no processo de se tornar película transparente entre os dois mundos. Tal a cortina do templo.
Por vezes visita-se em sonho a dimensão da existência em que, tendo-se sem dúvida um corpo, o desejo de o ver lhe dá uma forma alongada que faz pensar num peixe, sendo de modo algo semelhante que se move, comandado pela vontade (uma amiga que também "lá" vai falou-me nesta forma alongada que, dispondo-me a confirmar se assim era, logo o verifiquei em "lá" indo. - há como que uma ambientação progressiva que se faz através da recorrência destes sonhos pois que se recorda em cada "visita" o que já foi aprendido nas precedentes). O desejo de tocar logo se corporiza na mão que se estende, nos dedos que se alongam na direcção dos do "outro". No poema é como se estas mãos se tocassem através da película transparente que as separa (uma próxima vez que o sonho ocorra desejarei conhecer "isto"). Isto é já entrar no "sanctum sanctorum". De onde me vem a permissão? No entanto é como se a tivesse. Mais: é como se fosse chamada a entrar. Perguntar quem me chama é recapitular a vida desde o primeiro chamamento (falarei disto a seu tempo).

Entro no santuário (depois de todo este tempo a deambular pelos átrios) e escuto as palavras que me dão imagens da natureza das de scrying. (Continuarei num outro post, reservado a esta "aventura").


terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

novo preâmbulo...

Diz Traherne, no passo do poema "Dumnesse" que coloquei no último post do blogue que lhe consagro:

(...)Sure Man was born to Meditat on Things,
And to Contemplat the Eternal Springs
Of God and Nature, Glory, Bliss and Pleasure;
That Life and Love might be his Heavnly Treasure"


Um programa para a vida em que se aliam a meditação e a contemplação visando a identificação de "Life and Love" com "Heavenly Treasure", não a alcançar no final do percurso, mas a fruir a todo o momento. A via tradicional que leva da terra ao céu é, na visão de Traherne, a que traz o céu à terra. Em qualquer caso, trata-se da religação das duas dimensões da existência na fruição da "vida e do amor".

O programa é de todo o sempre, poder-se-ia dizer que apenas o modo de o verbalizar o situa no tempo. Continuar-se-á, se não a "meditar", certamente a reflectir sobre "as coisas", e, se não a contemplar "as nascentes eternas de Deus e da Natureza, da Glória, da suma felicidade e do prazer", certamente a beber delas. Tal é, ainda e sempre, o mistério que "toca" mais do que o pode "tocar" a poesia.

Fora da poesia assim "tocada", todo o discurso , explícita ou implicitamente, narra uma "história" com uma "verdade" para o momento. Seja como força centrípeta, seja como força centrífuga, essa "verdade" faz da narrativa uma tentativa do seu próprio entendimento. Não se lhe pode exigir coerência senão à luz de cada momento em que tudo se re-prespectiva. Na verdade, na vida que se vai escrevendo, como na escrita que se vai vivendo (e só pode ser propícia a consciência da sua implicação mútua) dá-se um reiterado re-perspectivar e recapitular. Por recapitulações desta ordem se vão (na vida como na escrita) descrevendo os "anéis crescentes" em torno da "torre antiquíssima", na imagem magnífica de Rilke. Começa-se, porém, sempre a meio, retraçando no novo "anel" o percurso realizado, na forma de uma história, nunca igual, ainda que envolvendo os mesmos ingredientes - não posso chamar "factos", mas também não posso chamar "acontecimentos" à "matéria prima" de que são feitas estas histórias da própria vida. E de que outra vida senão da própria? Tocada pela do "outro", abre nesse ponto ao maior mistério.







sábado, 6 de fevereiro de 2010

Hildegard of Bingen (1098-1179).

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Splendour in the grass

Fernando Pessoa, , entre as condições sem as quais "o símbolo será morto e o seu intérprete morto para o símbolo", refere a "compreensão", de que diz: "não direi erudição [...] pois a erudição é uma soma; nem direi cultura pois a cultura é uma síntese e a compreensão é uma vida". Carece, porém, da quinta e última condição que coloca, para que a "compreensão" seja mais, muito mais, do que um mais profundo entendimento que envolva toda a vida. Desta última condição, diz Pessoa: "direi talvez, falando a uns que é a graça, falando a outros que é a mão do Superior Incógnito" (forma de verbalização muito infeliz, convenhamos... ).

Tomo o poema "Erva" do Viandante, reservando para amanhã ou mais tarde "Filho Pródigo", um e outro de uma extrema beleza.
Se "Erva" é muito mais do que um símbolo em si mesmo (como tal, perfeito), dizê-lo "tocado" pela "compreensão" é o mesmo que o dizer "tocado" pela graça, "tocado" pelo Espírito, "tocado pela Sua mão" .
"Tocado pela graça, uma vez que, mais do que glosá-lo, acende-me na alma o desejo de "rezá-lo" como se "reza" um passo bíblico na oração "carismática". A simples leitura , silenciosa ou em voz alta seria já oração, deixando transparecer uma "interpretação", dada no momento e para o momento (e deste para a vida). Muitas vezes acontece rezar-se assim de início. Depois, a leitura suscita um "baloiçar ao som do vento" a que se dá voz. Ouço-me a tomar as palavras de um cântico de que muito gosto - "eu quero ser, Senhor amado, como...". E, em lugar de dizer "o barro nas mãos do oleiro" digo"como a erva que "baloiça /sob o som / do vento". E digo-o fazendo silêncio onde coloquei as barras a indicar mudança de verso.
E deixaria a cada um que comigo rezasse a vez em que o tocasse a "compreensão". Ao escrever isto, é Hildegard von Bingen que se me faz na mente com as palavras "like a feather on the breath of God" (ou são as palavras que me ocorrem e com elas aquela que assim se via).
Daria, pois, lugar a que outros tomassem o mesmo ou outro versículo e a oração prosseguisse até onde a levasse o Espírito. Muitas vezes faço sozinha a oração "carismática ... é mesmo como mais gosto de rezar. Por vezes pergunto-me se estarei realmente sozinha, se desta ou de outra dimensão não seremos verdadeiramente dois ou três... estando Ele no nosso meio. Vejo-me a rezar assim com o Viandante... não sei se, de alguma forma, não estará comigo se, rezando este poema, em Seu nome, o invoco em pensamento.
Enquanto escrevo isto, estou e não estou em oração. E "leve / me dobro", feita erva, num abandono propício à "compreensão".
E "vejo" Traherne rejubilar (rejoyce, uma palavra muito dele) ante o esplendor que neste poema alcança a certeza que o animou sempre:
"ao tocar a terra / logo se erguia / para a luz / do firmamento".
"The splendour in the grass"... não poderia ser maior do que este. Anúncio de uma maior claridade / glória. A da flor - deste verso de Wordsworth ou da "que os teus olhos vêem e eternamente se abre em Deus" (Silesius)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Interpretar, se não for "dado", como dom do Espírito, a um para benefício de outro (tal como o dom da "profecia", das "línguas", da "cura", etc ), poderá levar mais a um afastamento do que a uma aproximação da "compreensão". A pura graça (kharis, de onde "carisma") não é algo que, por se receber (acolher, seria um termo melhor), se possua, se torne propriedade nossa.

Pela "compreensão" diria "tocado" o poema "Sombra ii", de que do mesmo modo me toca a tão suave quanto profunda beleza. Desejaria o "dom da interpretação" com que pudesse responder "estou aqui" ao que me "chama". Não se trata do que "acontece" no momento e o toca de eternidade, mas do "acontecer" experienciado como essa alegria que transborda em lágrimas, e se as houver de dor ou tristeza, logo em si as converte. Ao contrário dos momentos de alegria banal, o passar do tempo não a torna pretérita, nem dá lugar à saudade, antes ao doce anseio de uma tranquila espera. E posso dizer com o Viandante:

"não tenho idade
nem a luz voraz
acende a colina
onde repousa
a melancolia

espero
a sombra que cresce –
do poente
leva-me
ao meio-dia".

Não é de surpreender que "a sombra que cresce" seja propícia a uma outra visão da realidade, em que se esbatem e diluem as delimitações impostas pelos "costumes dos homens" que se "cedo assassinaram" em nós a nossa "alma de criança", também cedo pisaram a "planta que dá à terra os nutrientes", que, todavia, nem pisada, se deixa morrer. (Estou, naturalmente, a parafrasear Traherne. Farei um post destes passos).