segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

as ênfases da «nova evangelização»

É a própria Igreja, em resultado de toda uma recapitulação (no sentido que Agamben reconhece no termo no uso que dele faz S. Paulo), que se coloca ao serviço do que chama, cada vez mais assumidamente, «a nova evangelização». É à sua luz que é gizado o plano para a caminhada desta Quaresma, «um percurso claro e definido», como no-lo mostram os textos apresentados ao longo das cinco semanas que cobre. Transcrevo:
  • «Deus quer oferecer-nos um mundo onde a felicidade é possível (1º domingo)
  • e a sua Palavra ensina-nos o caminho (2º domingo),
  • Palavra que nos chama à conversão e à renovação (3º domingo).
  • Aceitar esta Palavra implica, pois, mudar de vida. Fiquemos, contudo, certos do amor de Deus, gratuito e incondicional (4º domingo).
  • Quanto a nós, temos de estar atentos ao Seu plano de salvação e ir ao encontro dos outros, no amor e no serviço (5º domingo).»
As "etiquetas" (tags) são claramente: felicidade, caminho, renovação, amor.
Diria que sempre foram estas as traves mestras do cristianismo, mesmo nos tempos em que um muito maior enfoque era dado ao sofrimento, à cruz. Ciente disto mesmo, abracei com toda a minha alma a "nova evangelização", ao mesmo tempo que se me deparava em Traherne a sua perfeita antecipação, consolidando a ideia de por alguma razão ter sido feita no nosso tempo a sua descoberta.  Seriam as "etiquetas" que refiro acima as que indicaria para a sua obra.

Mas, não estaremos nós a tentar  "competir" com orientações não cristãs cada vez mais em voga que apontam o caminho da felicidade neste mundo, desde os orientalismos aos neo-paganismos,  camuflando uma realidade que, afinal, está, sempre esteve, aí? Refiro-me, naturalmente, à cruz. E não apenas à que nos cabe, já que não há quem a não tenha, mas à Sua cruz, o mesmo é dizer, ao amor crucificado.
Não envolve o amor, todo o amor, sempre sofrimento? 
Leio e releio, na busca de uma resposta, 1 Cor 13.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

As tentações no deserto

Primeiro domingo da Quaresma. O Evangelho, segundo S. Marcos 1, 11-15, é extremamente sucinto no que diz respeito às "tentações no deserto". Transcrevo: «Naquele tempo, o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto. E ficou no deserto quarenta dias. Era tentado por Satanás, estava entre as feras e os anjos serviam-no.» O desenvolvimento encontramo-lo em Mateus (4:1-11) e Lucas (4:1-13).
É ao que há de mais profundo em cada um de nós que a Palavra fala, directamente, sem mediações. Se o caminho até lá estiver desobstruído, se todos os ecos e ruídos forem silenciados, a compreensão tocar-nos-á. «Ter oração» é também isto, de entre as múltiplas formas que pode assumir. Pode envolver preparação - ascese - que pode do mesmo modo tomar diversas formas. A tentação coloca-se como obstáculo a vencer, seja como movimento silencioso da interioridade, seja materializando-se em palavras, e até em imagens.
Deixo um vídeo (ao gosto de Hollyhood) em que, tirando o mau gosto na caracterização de Satanás (refiro-me apenas às inoportunas gargalhadas), a  dramatização e o cenário são fiéis ao relato evangélico de Mateus e Lucas.



O passo suscita a Eric Becker esta canção:

Temptation of Christ - Desert Voice





Tentei captar a letra:

Forty days alone
Oh Spirit lead me
Father above
I need You now
Angel shepherd me
In this wilderness
Show me the way
The light of day.


Cold in the night
Oh Lord above I pray
Breathe in me
Spirit Lord
Save me
Call him alone
Thy kingdom shall be done
Desert voice,
Tempt me not
Leave me!


Spirit I am so alone
How I thirst
Feed me
Renew
Make firm my resolve
There shall be the time
Your Word is fulfilled
Call me friend
And believe.


Cold in the night
Oh Lord above I pray
Breathe in me
Spirit Lord
Save me
Call him alone
Thy kingdom shall be done
Desert voice,
Tempt me not.
Leave me!


Cold in the night
etc.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

«o espírito do Evangelho» (ou que seja quaresma todo o ano)

Começou ontem a Quaresma. Do comentário ao Evangelho do dia destaco a citação bíblica que é feita na sequência das reflexões sobre o jejum e a abstinência:
«O jejum que Eu aprecio é este, [...] repartir o teu pão com o esfomeado, dar abrigo aos infelizes sem asilo, vestir o nu, e não desprezar o teu irmão» (Is 58,6-7).
Uma prática para o ano todo, muitas sendo as formas de repartir o pão, dar abrigo e conforto e olhar cada um como Ele o olha. Na verdade estou convicta de que todos, «fiéis e não fiéis», o sabem, no mais fundo de si. A oposição que enunciei esbate-se e anula-se no momento em que cada um, independentemente da "ideologia", consciente ou inconsciente, que lhe estrutura a consciência, assume o Seu olhar.
Do comentário ao Evangelho de hoje, escrito por João XIII no Diário da Alma, destaco este passo (o carregado é meu), a complementar o anterior:
«Uma nota característica deste retiro espiritual tem sido uma grande paz e alegria interior, que me encoraja a oferecer-me ao Senhor, em ordem a qualquer sacrifício que Ele queira pedir-me.Desejo que esta tranquilidade e esta alegria penetrem cada vez mais, por dentro e por fora, toda a minha pessoa e toda a minha vida. [...] Terei muito cuidado na guarda deste gozo interior e exterior. [...] Para mim, deve ser um convite perene a imagem de São Francisco de Sales que, entre outras, gosto de repetir: eu sou como um passarinho que canta num bosque de espinhos. Assim, pois, poucas confidências sobre o que possa fazer-me sofrer. Muita discrição e indulgência no meu juízo acerca das pessoas e das situações; inclinação para orar especialmente por quem for para mim motivo de sofrimento; e, em tudo, grande bondade e paciência sem limites, lembrando-me de que qualquer outro sentimento [...] não está de acordo com o espírito do Evangelho nem da perfeição evangélica.»

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Miserere Mei, Deus (1/2) Josquin Desprez (1450-1521)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

De profundis

domingo, 5 de fevereiro de 2012

«foi para um lugar solitário e ali se pôs em oração»

Do Evangelho do dia de hoje consta um dos muitos passos referentes à oração a par da pregação de Jesus: 


«De madrugada, ainda escuro, levantou-se e saiu; foi para um lugar solitário e ali se pôs em oração».

Vibrantes na sua eterna actualidade são as palavras de Tauler (1300-1361, sermão 15) a este respeito, que colhi em EAQ:

«Eis a obra melhor e mais santa que o Filho de Deus realizou na terra: adorar Seu bem amado Pai. Mas isto ultrapassa em muito qualquer raciocínio, e não conseguimos de maneira nenhuma alcançá-lo e compreendê-lo se não for no Espírito Santo. Santo Agostinho e Santo Anselmo dizem-nos que a oração é «uma elevação da alma para Deus». [...]Eu digo-te apenas isto: liberta-te de ti mesmo e de todas as coisas criadas, e eleva plenamente a tua alma para Deus, acima de todas as criaturas, no abismo profundo. Mergulha o teu espírito no espírito de Deus com verdadeiro abandono [...]. 

[...] Pede a Deus tudo o que Ele quer que Lhe seja pedido, o que tu desejas e o que os homens desejam de ti. E acredita nisto: aquilo que uma pequena e insignificante moeda é, comparada com cem mil moedas de ouro, eis o que é toda a oração externa, comparada com esta oração que é uma verdadeira união com Deus, com esta fusão do espírito criado no espírito incriado de Deus. [...]

Se te pediram uma oração, é bom que a faças de maneira exterior, como te pediram e como tu te comprometeste a fazer. Mas ao fazê-lo leva a tua alma para as alturas e para o deserto interior, conduz para aí todo o teu rebanho como Moisés (Ex 3,1). [...] «Os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade» (Jo 4,23). É nesta oração interior que se completam todas as práticas, todas as fórmulas e todos os tipos de oração que, desde Adão até agora, foram oferecidos, e que serão oferecidos até ao último dia. Tudo isto é levado à sua perfeição num instante, neste recolhimento verdadeiro e essencial.»

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

de novo o tema "literatura e vida"

aqui
Numa visão panorâmica do caminho percorrido no espaço-tempo,  sobressaem como marcos os acontecimentos cuja ligação oferece suporte à criação, à descoberta, ou à revelação de um sentido para o agora, aberto ao tempo-espaço que resta. Com estas três palavras - criação-descoberta-revelação- remeto para diferentes posições teóricas, que  mais não são do que modos, marcados por diferentes ideologias, de olhar o mesmo mistério. Quando se parte da “compreensão”, por “compreensão” entendendo o que diz o termo inglês wholeness, na reorientação que David Bohm propôs e que nisto mesmo consiste, o sentido emergente é simultaneamente criado, descoberto e revelado.   Ainda que nunca a alcancemos, ainda que toda a tentativa da sua aproximação redunde num maior afastamento, ela alcança-nos, compreendendo-nos. É ela a realidade que em si mesmo o acontecimento reflecte. Pretender alcançar o acontecimento em si mesmo é pretender alcançar a "compreensão" que lhe dá sentido. Impossível intento.

É por isso que, como disse já, não vejo diferença (a não ser formal) entre uma auto-biografia e um romance. A verosimilhança parece ser mais um requisito do romance do que da vida, já que muito do que acontece na vida seria rejeitado como inverosímil num romance. Paul Auster poderia fazer-me pensar que é a sua arte de narrar que esbate, na sua obra, a diferença ontológica entre uma e outra forma narrativa, se não estivesse tão convicta de que também no plano da vida temos parte no que no plano da obra chamamos “autor”, realidade que as ideologias que marcaram a modernidade pretenderam, num e noutro planos, aniquilar. Transcendente e imanente ao texto que escreve, o autor da obra é ao mesmo tempo co-autor da sua própria vida, onde a obra assumirá, junto de outros, o relevo de um marco a assinalar um percurso, um caminho.