sábado, 26 de setembro de 2009

o templo de Deus é santo (cont.)

Retomo o mesmo tema, um pouco mais afoita depois das considerações explicitadas. Em vez de desejar o impossível (convicta agora de que nem tão pouco é desejável) de sacudir destas palavras (que recoloquei no título) toda a carga semântica acumulada desde o momento em que foram proferidas pela primeira vez (nem esse momento se pode, de resto, dizer inaugural, tendo S. Paulo (1 Cor 3, 16-17) atrás de si toda a longa, longa tradição judaica), acolho-as com toda essa pesada carga que comportam como se acolhe uma totalidade inabarcável, todavia mais real do que a parte que dela se abstrai.
Aprendi isto com David Bohm (que é agora também uma dessas presenças tanto mais vivas quanto podem acontecer em quem as evoque/convoque em função do que me ocorre chamar "afinidades electivas"). A parte: uma abstracção da totalidade e todavia uma totalidade em si mesma na holodinâmica do implicar e explicar em que as "incepções" acontecem (explico: "incepção" chama Bohm ao que irrompe na "ordem explicada" sem que tenha estado na "ordem implicada"). Vejo-as como momento de pura criação do Espírito (a única criação possível), tudo o resto não passando de "invenção" de um "já"). Só o Espírito "sopra onde quer", não estando nem sendo aí, antes aí acontecendo. Isto que digo já é, naturalmente, extrapolação minha, a partir das "incepções" de Bohm e de R.M. ( no seu Infinito Singular e não só).
Retomo o tema porque ele me serve de background à reflexão sobre o "mistério da fisicalidade" (como lhe chama o Viandante), indissociado e indissociável (sob pena de profanação) da "espiritualidade" como terceiro interveniente na implicação mútua corpo-alma (no sentido dos termos gregos soma e psyche).
Continuarei num outro post. Deixo no blogue consagrado a Traherne um excerto de um poema seu sobre este templo de que falo, tal como, com olhos de adulto, este "meu" místico o contempla na memória que conserva da infância.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O templo de Deus é santo

"O templo de Deus é santo / e vós sois esse templo". A música que faz destas palavras um cântico aumenta o seu encantado mistério. Inclinando-me tanto para o singular (na sua infinitude), para o cada um único, cada "pedra viva do templo do Senhor" é o templo inteiro, vivo e santo (whole, holy, hale). Assim é para mim cada uma dessas presenças especiais de que falei no último post. Digo especiais porquanto privilegiadas numa eleição que, em última análise, atribuo a essa trindade dinâmica que me transcende ainda que nela participe. A atenção humana é limitada, sabe-o quem determina que se restrinja tanto o número dos "outros" assim "privilegiados" tornando-os raros. Só posso ver nisto a Sua mão, por isso é grande o meu deslumbramento, como se o gesto pressentido fosse esse "ecce" que quase já espero a integrar o texto continuamente reescrito do que tem sido esta viagem.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

a diferença, um vislumbre do mistério

Ao falar em "orientação para significados relevantes" apropriei-me de uma designação de que retiro toda a carga socio-ideológica (hoje anacrónica) que lhe incutiu quem a cunhou, para com ela simplesmente referir o princípio de constituição de cada um dos inúmeros mundos (tantos quantos os indivíduos) numa mesma realidade multidimensional. Os significados (meanings) surgem enquanto tais (ainda que seja plausível admitir um potencial semântico, como o faz M.A.K. Halliday) em função da orientação que implicam e que os implica, numa relação que se estabelece mercê desse "terceiro" que dela irrompe (ou não decorresse tudo isto de uma trindade dinâmica à semelhança daquela de que tudo decorre, inclusivamente o que é e o que não é).
Claro que tudo isto é consabido (fora, obviamente, o mistério da trindade, ou não fosse o próprio mistério a sua essência), mas requer que se lhe faça referência quando se trata de falar da experiência pessoal do divino (e do humano também). Devo confessar que, se sinto sempre algum desconforto ante a análise do que é, por natureza, inanalisável a não ser pelo próprio (que se pode ou não prestar a esse esforço, de inerente que ele é à essência pensante do ser humano), muito me indispõe todo o diagnóstico do que é, do mesmo modo, indiagnosticável. Admito, quando muito, que se confronte o que se lê e o que pessoalmente se vivenciou, na certeza de que mutuamente se moldam (tal como mutuamente se moldam o que se lê e o que nunca de comparável se vivenciou, como será o caso de Certeau e de outros menos ideologicamente criteriosos).
De qualquer maneira há a tendência a buscar as semelhanças (tal como eu mesma o fiz durante mais de sete anos), para se vir porventura a descobrir mais tarde (como aconteceu comigo) que o mais importante, o que mais propicia um vislumbre do mistério (que é a única coisa que, em essência, se pode dizer haver de comum, nesse mistério assentando as semelhanças discursivas encontradas) é exactamente aquilo que há de diferente e deixa a sua marca.
Foi assim que Thomas Traherne se tornou para mim uma presença especial, como acontecera antes com a do autor (anónimo) de Cloud of Unknowing. Diferentes presenças, todavia, tão diferentes quanto necessariamente o são duas pessoas distintas. Que dizer então da presença de Jesus (aqui, agora e sempre)? Que dizer da presença de quem ainda está, em corpo, alma e espírito, aqui? Presenças que têm em comum o serem especiais, singularizadas por essa orientação do coração e da mente implicada na constituição do mundo que só eu posso conhecer (e Alguém, único, conhece melhor do que eu).

diferentes mundos numa mesma realidade

Há já tanto tempo que não tenho oração, ainda que possa encarar como tal (há tanto modo de orar...) esta rápida sucessão de dias entregues a actividades domésticas intermináveis, numa luta com o pensamento que me desliga delas e me leva aonde nem sei. Ando assim num entre mundos, que é afinal o meu mundo, não etéreo (como o pensam, dado o meu alheamento), mas com uma realidade própria, sendo ao mesmo tempo a de toda a gente. Dizem que os autistas vêem e retêm indescriminadamente tudo à sua volta, enquanto as pessoas comuns seleccionam consoante a orientação da sua mente (e coração, claro) para significados (que, de qualquer maneira, não estão aí, à espera de serem seleccionados, o que é uma outra questão). Como em tudo, também nisto haverá uma "curva de Gauss" e por isso se fala no mundo das pessoas "normais". Nesta perspectiva, o "não normal" é apenas uma mais acentuada diferença.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Um poema de Cernuda





Si el hombre pudiera decir lo que ama,

si el hombre pudiera levantar su amor por el cielo,

como una nube en la luz;

si como muros que se derrumban,

para saludar la verdad erguida en medio,

pudiera derrumbar su cuerpo, dejando sólo la verdad de su amor,

la verdad de sí mismo,

que no se llama gloria, fortuna o ambición,

sino amor o deseo,

yo sería aquel que imaginaba;

aquel que con su lengua, sus ojos y sus manos

proclama ante los hombres la verdad ignorada,

la verdad de su amor verdadero.

Libertad no conozco sino la libertad de estar preso en alguien

cuyo nombre no puedo oír sin escalofrío;

alguien por quien me olvido de esta existencia mezquina,

por quien el día y la noche son para mí lo que quiera,

y mi cuerpo y espíritu flotan en su cuerpo y espíritu

como leños perdidos que el mar anega o levanta

libremente, con la libertad del amor,

la única libertad que me exalta,

la única libertad por que muero.

Tú justificas mi existencia:

Si no te conozco, no he vivido;
si muero sin conocerte, no muero, porque no he vivido.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

uma outra forma de presença

Coloquei no último post um poema de Sophia de Mello Breyner por ele me abrir uma via de reflexão sobre a natureza de uma outra forma de presença, tanto mais maravilhosa quanto "noch bei Leibes Leben", na expressão de Angelus Silesius, e não menos misteriosa.
Na verdade, se a referência ao "cipreste agudo" leva a pensar que o poema é dirigido a alguém que deixou o corpo físico, tudo o mais mo dá a ver como irrompendo da relação trina tu/Tu-eu, proferido por um eu que nasce da relação em que intervém no acto em que enuncia/anuncia as palavras que leio (ou escuto cantadas).
Assim o ligo à presença maravilhosa de que falo enquanto contemplo o seu mistério.

sábado, 12 de setembro de 2009

Pela flor pelo vento pelo fogo

Pela estrela da noite tão límpida e serena

Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo

Pelo amor sem ironia - por tudo

Que atentamente esperamos

Reconheci tua presença incerta

Tua presença fantástica e liberta


Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Antonio Caldara - Maddalena ai piedi di Cristo



Procurei a letra desta ária cantada pela voz belíssima de Maria Cristina Kiehr. A minha alma canta estas palavras da Madalena aos pés de Cristo:

Voglio piangere
sin che frangire
possa il nodo che mi lega.
Sempre el cielo
apparve amico
a’ desiri, a’ sospiri
d’un alma che prega.



domingo, 6 de setembro de 2009

"Ad cor" (Buxtehude. Membra Jesu Nostri)

VI. Ad cor

(To the heart)

1. Sonata
2. Concerto a 3 voci (SSB)
Vulnerasti cor meum,
soror mea, sponsa,
vulnerasti cor meum.
3. Aria (S)
Summi regis cor, aveto,
te saluto corde laeto,
te complecti me delectat
et hoc meum cor affectat,
ut ad te loquar, animes
4. Aria (S)
Per medullam cordis mei,
peccatoris atque rei,
tuus amor transferatur,
quo cor tuum rapiatur
languens amoris vulnere
5. Aria (B)
Viva cordis voce clamo,
dulce cor, te namque amo,
ad cor meum inclinare,
ut se possit applicare
devoto tibi pectore
6. Concerto a 3 voci (SSB)
Vulnerasti cor meum,
soror mea, sponsa,
vulnerasti cor meum.

"fons selata"

"Se conhecesses o amor de Deus / tu correrias até o encontrar". São os dois versos do refrão de um cântico que glosa o passo da Samaritana ( Jo, 4:10): "Se conhecesses o dom de Deus...". Se se tiver, ainda que no espaço de um instante, apenas pressentido esse amor, se se tiver provado uma gota apenas da água que Ele dá, ela tornar-se-á, como Ele disse, "uma nascente de água a jorrar para a vida eterna". A água que sacia a sede de infinito... Ainda que o deserto avance e a fonte seque à superfície, nas profundidades "correrão rios de água viva" ("o que embeleza o deserto", disse o Principezinho, "é que ele esconde um poço em qualquer parte".) Ainda que a noite caia e as trevas envolvam a terra, há a certeza de que a luz as romperá em amanhecendo. Fé é uma certeza desta natureza que muda radicalmente uma vida, não é crença nisto ou naquilo. Conhecer o dom de Deus é como ver o sol pela primeira vez : uma vez basta, ainda que o escondam aos olhos as mais carregadas nuvens ou a mais escura das noites.
Diferentes, sem dúvida, são os caminhos, diferentes as distâncias, as paisagens, as circunstâncias, diferentes os passos e o ritmo da marcha, mas a água é a mesma, o mesmo é o dom, o mesmo o amor. Poderei dizer, no modo de leitura que me é propiciado pelos próprios poemas que leio - e falo dos "poemas do viandante" e do momento em que, em mim, reading se torna scrying - que pressinto essa água viva "a jorrar para a vida eterna" e com ela a certeza do dom e do encontro.

sábado, 5 de setembro de 2009

"noch bey Leibes Leben"

É notória a proximidade entre o que nos propõe Silesius nas palavras do seu Prólogo a Cherubinischer Wandersmann e o que proclama Traherne ao longo das suas meditações e poemas, nomeadamente, que o gozo da felicidade não tem que ser remetido para o Além, podendo começar já neste mundo, na expressão de Silesius "noch bey Leibes Leben / schon in dieser Sterblichkeit" (trad. ainda em vida corpórea / já nesta condição mortal). (Coloquei no outro blogue um passo de "The Fourth Century" (C 4: 9) em que Traherne claramente o explicita).

Silesius termina o seu Prólogo a Heilige Seelenlust reiterando o convite a que com ele experimentemos esta mesma felicidade no amor de Deus, na pessoa humana e divina de Jesus:


[...] wendet euch derowegen zu mir und liebt mit mir meinen JEsum. Denn das wird uns eine ewige Freude seyn.

Trad.:
Voltai-vos por isso para mim e amai comigo o meu Jesus. Pois isso será para nós uma eterna alegria.