sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Eros e Agape (1)

"«Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele » (1 Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã (...)." Assim começa Bento XVI o texto da sua primeira Carta encíclica.
Mais adiante, diz: «Com a centralidade do amor, a fé cristã acolheu o núcleo da fé de Israel e, ao mesmo tempo, deu a este núcleo uma nova profundidade e amplitude.» E explica: «(...) agora o amor já não é apenas um « mandamento », mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro.»

Devo dizer que só agora, que me proponho pensar, pela escrita, a ligação entre eros e agape - é que, sabendo que Bento XVI aborda nesta Carta este tema, me dispus à sua leitura.  Atribuo não o ter feito antes à fraca motivação que provoca em mim a consciência dos constrangimentos que em matéria de escrita forçosamente se colocam a quem escreve como Papa nos tempos que correm.
É verdade que, sendo dirigida aos «fiéis» (desde os consagrados aos leigos),  os "não fiéis" não estão, em princípio, contemplados, não lhes cabendo pronunciar-se. Mas é só o que  legitimamente não podem fazer, já que legitimamente podem ler e bom seria que, de boa fé, o fizessem. O maior constrangimento não me parece, porém, vir destes,  mas da heterogeneidade de "fiéis" face aos quais há que ter a mansidão do cordeiro e a prudência da serpente.
É assim que sinto sempre em mim, quando leio textos desta natureza, a tensão entre o que pode ser dito falando a uns e o que poderia ser dito falando a outros, no meio ficando o que é efectivamente dito. Se já S. Paulo se confrontava com este problema, cuja solução estará porventura contemplada entre os muitos sentidos que têm sido sugeridos para «ouk aschmonei», em 1 Cor 13: 6.

Diria que será em atenção a uns que, na última frase que citei da Carta encíclica, faz uso do adjunto modal "apenas", se bem que fragilizado pela ausência, porventura em atenção a outros, do correlato "também". Um modo de conciliar uns e outros. Na verdade,  o "mandamento do amor" só é inteligível enquanto tal se o entendermos como o entendeu Maria: amar é ter abertas as portas do coração, é acolher o amor quando ele vem ao encontro,  é dizer-lhe incondicionalmente "sim". Na forma verbal "amarás" é o estar predisposto a abrir, a acolher, a dizer sim, que constitui a "modalidade" de "mandamento", o "acontecimento em si", o dom do que é dado a sentir enquanto amor,  depende d' Ele inteiramente. Haverá no amor uma «escala de perfeição» a culminar naquele que é o supremo dom do Espírito, contemplando em si todos os outros dons.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Arvo Pärt - Berliner Messe - "Credo"



Credo in unum Deum, Patrem omnipotentem, factorem caeli et terrae, visibilium omnium, et invisibilium. 

Et in unum Dominum Jesum Christum, Filium Dei unigenitum. 
Et ex Patre natum ante omnia saecula. 
Deum de Deo, Lumen de lumine, Deum verum de Deo vero. 
Genitum, non factum, consubstantialem Patri: per quem omnia facta sunt. 
Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis. 
Et incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine: Et homo factus est. 
Crucifixus etiam pro nobis: sub Pontio Pilato passus, et sepultus est. 
Et resurrexit tertia die, secundum Scripturas. 
Et ascendit in caelum: sedet ad dexteram Patris. 
Et iterum venturus est cum gloria, judicare vivos et mortuos: cuius regni non erit finis. 

Et in Spiritum Sanctum, Dominum, et vivificantem: qui ex Patre Filioque procedit. 
Qui cum Patre et Filio simul adoratur, et conglorificatur: qui locutus est per Prophetas. 
Et unam sanctam catholicam et apostolicam Ecclesiam. 
Confiteor unum baptisma in remissionem peccatorum. 
Et exspecto resurrectionem mortuorum. Et vitam venturi saeculi. Amen.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Buxtehude - Cantata: "Das neugebor'ne Kindelein" BuxWV13

A celebrar o dia de hoje escolhi esta cantata de Buxtehude:





DIETRICH BUXTEHUDE (C. 1637-1707)
Hymn lyrics by Cyriacus Schneegass (1546-1597)

Cantata "Das neugebor'ne Kindelein" for soprano, alto, tenor, bass, three violins, violone, and basso continuo in A minor BuxWV13

GERMAN

Das neugebor'ne Kindelein,
das herzeliebe Jesulein
bringt abermal ein neues Jahr
der auserwählten Christen Schar.

Des freuen sich die Englein,
die gerne um und bei uns sein,
und singen in den Luften frei,
dass Got mit uns versohnet sei.

Ist Gott versohnt und unser Freund,
was kann uns tun der arge Feind?
Trots Teufel, Welt und Hollenpfort!
Das Jesulein ist unser hort.

Es bringt das rechte Jubeljahr.
Was trauern wir dann immerdar?
Frisch auf, es ist jetzt Singens Zeit:
Das Jesulein wend't alles Leid.


ENGLISH

New-born today, this little child,
dear little Jesus, sweet and mild,
brings us again a brand-new year
for all the Christians gathered here.

The little angels all rejoice,
they fill the air with cheerful voice,
They dwell with us, they praise the child,
for God with us is reconciled.

It God is with us, is our friend,
why should we fear the evil fiend?
Brave devil, world and hell's damnation!
Jesus, the child, our salvation.

He brings a year to be right glad.
Why then be sorrowful and sad?
Lift up your hearts, it's time to sing,
all trouble's end will Jesus bring.

Der Heiland



Immer wieder wird er Mensch geboren
Spricht zu frommen, spricht zu tauben Ohren
Kommt uns nah und geht uns neu verloren.


Immer wieder muß er einsam ragen,
Aller Brüder Not und Sehnsucht tragen,
Immer wird er neu ans Kreuz geschlagen.


Immer wieder will sich Gott verkünden,
Will das Himmliche ins Tal der Sünden,
Will ins Fleisch der Geist, der ewige, münden.


Immer wieder, auch in diesen Tagen,
Ist der Heiland unterwegs, zu segnen,
Unsere Ängsten, Tränen, Fragen, Klagen,


Mit dem stillen Blicke zu begegnen,
Den wir doch nicht zu erwidern wagen,
Weil nur Kinderaugen ihn ertragen.


Hermann Hesse

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Stille

Do poema de Rilke «Wenn es nur einmal so ganz stille wäre» (que aqui deixei  no dia 19 como oração que faço minha, neste tempo que deveria ser de purificação dos sentidos e do espírito, de cura interior e libertação) encontrei esta tradução:

If only there were peace, utter peace.
If chance were still, and common randomness
muted and the laughter of neighbours,
and if the murmuring that the senses make
didn't so hinder me, awake -


Then I could, up to your furthest border,
think you out in thousand thoughts, in order
just to possesss you for a smile's duration,
and offer you for all the world to take
in thankful donation.

 Mas é com o original que rezo. Porque é de silêncio este anseio, não simplesmente de paz. Numa linguagem feita de silêncio não haveria lugar ao temor da inconveniência, como o não há quando Lhe falo, com palavras ou sem elas...

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

reflexão deste tempo de Advento (1)

Penso que não poderia ser mais sugestiva a pergunta a encabeçar a caixa do CD com o filme Derrida (o segundo e último que o filósofo aceitou que lhe fizessem): 
«What if someone came along who changed not the way you think about everything, but everything about the way you think?» 
A metáfora de Paul de Man parece-me extremamente elucidativa do que está em causa: a luz tanto revela como esconde, bastando arredá-la um pouco para se ver o que antes não se via, ou porque ficava ou na sombra ou nas margens, ou porque se escondia atrás dela, da própria luz. Isto leva, em última análise, a perguntar: e como ver a própria luz? Parece óbvio que não se vê a luz com outra luz, antes com a escuridão. Mas aqui pode acontecer fazer sentido o epigrama de Silesius (que parafraseio): se ficas cego por olhar o sol, culpa os teus olhos, não a luz.
Talvez seja inerente ao modo de pensar da mulher varrer com o olhar todo o espaço em volta, como um radar, em vez de focar, como um telescópio, este ou aquele ponto no céu, ou, como um microscópio, este ou aquele ponto sob a objectiva da lente. Pergunto-me como seria o pensamento se tivesse sido desenvolvido a partir do modo feminino de pensar, mas faço-o por pura especulação. Não teria sido desejável, as coisas estão bem como estão. Afinal Derrida precisava que as coisas estivessem como estão para as revolucionar. Quer-me parecer que não lhe terá, mesmo assim, sido prestada a devida atenção, ou que terá sido por isto mesmo que alguns lhe pretenderam negar a "categoria" de filósofo.

Há tempos encontrei, entre os papéis acumulados no sótão, um ponto de filosofia do meu tempo do liceu. Curiosamente não encontrei mais nenhum. Nem tão pouco me lembro de o ter guardado ou de o ter guardado a minha mãe (já que estava com papéis que ela quis deitar fora e que eu trouxe para ali e ali ficaram). Falo disto porque era precisamente o que me ficou na memória por me ter merecido palavras muito duras da professora, escritas à margem. Algo assim: é muito infantil ou não sabe mesmo o que vai pelo mundo? Isto porque, dando-me a possibilidade de dizer qual das posições face à realidade apresentadas eu preferia, escolhi a de Leibniz: tudo acontece da melhor maneira no melhor dos mundos possíveis. Pois se já então achava que sempre um maior bem acabava sempre por, com o tempo, se revelar. Lembro-me de sentir não ter "armas" para discutir, contentando-me em achar que era ela que não alcançava o pensamento de Leibniz. Mas o incidente marcou-me para a vida. Precisava de conhecer Derrida para lhe poder ter dito que, se arredasse um pouco a luz a que olhava, seria também capaz de ver, não o que Leibniz via, mas o que me davam a ver as suas palavras.
Precisava de percorrer um longo caminho para fazer uma aprendizagem em que, a todo o momento, vejo estar longe de satisfatória a nota obtida . Ando como que munida de uma joeira: de tudo guardo o que me parece bom (e, como tal, verdadeiro e belo aos meus olhos) e sopro fora o resto. Ou não tivesse sido isto mesmo que Ele fez (pois se  n' Ele se unem os modos de pensar masculino e feminino na mais perfeita harmonia), inclusivamente no que toca a antiga Lei (o Antigo Testamento).
Tento segui-Lo no que toca a vida, mas faço-o desastradamente e muitas vezes  com a palha deixo ir também o grão. E então tenho de repetir o processo, repetência que, nunca sendo do mesmo, se revela sempre reiteração.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Wenn es nur einmal so ganz stille wäre




Wenn es nur einmal so ganz stille wäre.
Wenn das Zufällige und Ungefähre
verstummte und das nachbarliche Lachen,
wenn das Geräusch, das meine Sinne machen,
mich nicht so sehr verhinderte am Wachen -:

Dann könnte ich in einem tausendfachen
Gedanken bis an deinen Rand dich denken

und dich besitzen (nur ein Lächeln lang),
um dich an alles Leben zu verschenken
wie einen Dank.


Rainer Maria Rilke, 22.9.1899, Berlin-Schmargendorf

domingo, 18 de dezembro de 2011

Andreas Scholl - Mass in b minor - Agnus Dei - Bach

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Tota pulchra es Maria, Grzegorz Gerwazy Gorczycki

Passa da meia-noite deste dia da Imaculada Conceição.
A assinalá-lo deixo Tota pulchra es Maria (desconhecia Grzegorz Gerwazy Gorczycki...)

sábado, 3 de dezembro de 2011

quando a rosa e o fogo são um

Se na concisão e no rigor formal se lhe compara, o haikai contrasta vivamente com o epigrama alexandrino pela clareza e limpidez da imagem que o dizer verdadeiramente "dá a ver" (um "ver" que está por todos os sentidos). Acentua alguns traços nas componentes semânticas da imagem gráfica que normalmente acompanha e a que deste modo se religa, alcançando aquela "objectividade" que o género preconiza, sem que esta seja «uma forma subtil de subjectividade» (como acontece na pretensa "objectividade"). Ou seja, a dualidade sujeito-objecto desfaz-se na tríade em que da ligação indissociável do representacional e do interpessoal irrompe aquilo mesmo que os liga e que no texto se manifesta. 
Em alguns casos chamar-lhe-ia "Espírito", numa analogia entre a trindade asim gerada e a trindade divina (e humana), na certeza de que, sem se contradizer, a cada um falará de um modo diferente, consoante o seu próprio caminho. Só, porém, a quem «tiver ouvidos para ouvir». Diria que, não os tendo, não acontecerá esta dinâmica trinitária, tudo se reduzindo àquela em que interagem as dimensões semânticas no mero funcionamento da linguagem.
Falo do ponto de vista do leitor, na certeza de que o autor o é também: um leitor inseparável do autor enquanto activamente interventivo no acto instaurador da realidade que é o poema. Só porém, pela irrupção do Espírito como terceiro interveniente no processo da sua criação é que nele o poético e o sagrado - a rosa e o fogo -  serão um. 
Tentarei escrever, como modo de a pensar a partir da leitura de um poema deste género, a experiência desta união.