sábado, 26 de dezembro de 2009

A Av.Almirante Reis de então


Parece incrível... mas esta foto parece ter sido tirada exactamente do 17... do 1º, do 2º andar?
Data de 1938, segundo indicação de onde acabo de a roubar.
Não a recordo com estas árvores a meio, mas, no resto, diria que assim era ainda na década de 50...

O Natal e a infância

Assinalei aqui o dia de Natal com músicas que marcaram natais de tempos que me parecem hoje não apenas distantes, mas de tal modo ligados a arquétipos que me pergunto se esta espécie de nota nostálgica que a sua evocação faz soar não tem realmente mais a ver com o arquétipo do que com as experiências efectivamente vividas.
Diria que, nessa infância que tornamos mágica - ou se nos torna mágica (de novo o "ergativo") -, correm já, ainda que subterraneamente, os "rios de mágoa" que nos tocam e em que por vezes nos deixamos submergir hoje, pressentidos, então, de uma forma vaga mas intensa (o que Malte descreve como "das Grosse" ou outros terrores que dariam pelo colectivo "das Ungeheuer") e que tendemos a diluir nos tons dourados com que pintamos o quadro dessa infância remota.
Já na maturidade, quando me deu uma espécie de impulso para pintar (sem ter conhecimento das técnicas da arte) tentei captar a ambiência da casa que guarda as memórias incoesas desse tempo, o 17 da Almirante Reis. Deixo aqui o pormenor de um espelho, aquele onde vi pela primeira vez a minha imagem e em que, até à última - quando aprendi as leis da reflexão -, resisti a ver apenas isso.
O prédio foi demolido, à excepção da fachada; restaurada, ainda que seja inteiramente novo o espaço que a sustenta,nem por isso deixará de sustentar para mim, no terceiro andar, o que foi o meu primeiro mundo. A esse mundo pertencerá sempre o Natal, mesmo depois de Jesus ter deixado de ser o Menino que me deixava presentes no sapatinho. Recordo o abalo ante a revelação de que só indirectamente vinham d'Ele - e pergunto-me como é possível lembrar-me também de "fazer de conta" que não percebia que tudo o que me diziam eram formas de tentar salvar o que pensavam ter destruído em mim. Como dizer-lhes que chorava apenas uma imagem quebrada, como falar-lhes da absoluta indestrutibilidade de qualquer coisa que, no mais fundo de mim, me dizia "Estou sempre contigo"? A maior complexidade (do que tentei verbalizar nestes termos hoje) concentra-se na maior simplicidade, como tal compreendida inteira ("as a whole") pela criança na fase em que progressivamente vai perdendo a capacidade dessa compreensão (Traherne fala disto em "Dumnesse")
Em tempos relativamente recentes, fui convidada a traduzir do francês um livro de poemas de um poeta para mim inteiramente desconhecido, Jean Albert Guénégan. Qual não foi o meu assombro, ao deparar com um poema que começava assim: " De ton errance Avenida Almirante Reis / naît et se ride la question de l'âme. / La solitude pour toute fidélité / tes jours sont un labour de soupir / où l'enfance se couche, (...)". Apenas pude saber que o seu autor escreveu aqueles escassos textos numa visita a Portugal... Na sua rápida passagem por Lisboa, o que é que o tocou ali, onde nada parece haver a assinalar a quem venha tão de fora?



sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

dia de Natal



Adeste Fideles Lyrics

Adeste Fideles
Laeti triumphantes
Venite, venite in Bethlehem
Natum videte
Regem angelorum
Venite adoremus
Dominum

Cantet nunc io
Chorus angelorum
Cantet nunc aula caelestium
Gloria, gloria
In excelsis Deo
Venite adoremus
Dominum
Ergo qui natus
Die hodierna
Jesu, tibi sit gloria
Patris aeterni
Verbum caro factus
Venite adoremus
Dominum




Jauchzet, frohlocket! Auf, preiset die Tage
Weihnachts-Oratorium I

1. Coro

Jauchzet, frohlocket! auf, preiset die Tage,
Rühmet, was heute der Höchste getan!
Lasset das Zagen, verbannet die Klage,
Stimmet voll Jauchzen und Fröhlichkeit an!
Dienet dem Höchsten mit herrlichen Chören,
Laßt uns den Namen des Herrschers verehren!

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O "tocar"

A questão do corpo passa a colocar-se de uma forma diferente ao entendermos que não somos uma dualidade, mas uma trindade. Estou há muito tempo para ir verificar que palavra grega utilizou S. Paulo para "corpo" e, sobretudo, se utilizou a mesma, quando escreve:"se há corpo natural, também o há espiritual". Fui finalmente confirmar (não importa muito a transposição para o nosso alfabeto) e a palavra é a mesma, "soma":"estin swma yucikon kai estin swma pneumatikon". Se o não fiz antes foi por estar a seguir uma linha de reflexão que, ao encontro desta concepção antropológica, reconhece o envolvimento dos sentidos, portanto do corpo, na relação com a transcendência, nomeadamente o "Tu", mas também o "tu" (que, na relação, se tornam mais do que "o Outro" ou "o outro").
O corpo e o tocar são o grande tema de Jean-Luc Nancy, que Derrida longamente desenvolve (em Le toucher) a partir da pergunta que coloca logo no início: "Quand nos yeux se touchent, fait-il jour ou fait-il nuit?" A evidência de que os olhos nunca se podem tocar leva a que, de imediato, se entenda "tocar" metaforicamente interpretando "olhos" como" olhar", o que retira à questão o seu mais profundo alcance, que todo o livro não chega a esgotar , nem mesmo quando, no fim, responde finalmente à pergunta, num daqueles passos em que o filosófico se rende ao poético:
"Quand des yeux se croisent intensément, infiniment, jusqu'à l'abyme, (...), quand rien au monde ne peut s'interposer, et pas même la lumière, pas même la source tierce d'un soleil, quand je vois le regard aimé qui me regarde au-delà de toute réflexivité, car je ne l'aime que pour autant qu'il me vient de l'autre, est-ce le jour ou la nuit? (...) Dans le baiser des yeux, il ne fait pas encore jour, il ne fait pas encore nuit. Point de nuit encore, et point de jour. Mais le jour et la nuit se promettent. (...) (Derrida, 2000: 343).
O poema de Jacqueline Risset que, num parêntesis, merece a Derrida a sua transcrição, fala deste mesmo "beijo" como um "tocar" literal: "mais qui //pourrait me toucher à présent/ sinon toi?"

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

para "Um anjo perdido "

Reiterando o que já terei dito, os poemas do Viandante dizem, e, no dizer, constituem - mais do que replicam - "acontecimentos" da natureza daqueles que suscitam a R.M. a noção de "infinito singular", descrito como ruptura no tecido do ser (se, para David Bohm, o "ser", o que é, é o "holomovimento do implicar-explicar", esta ordem de acontecimentos sobrevém como que de fora do ser, como irrupção na "ordem explicada" do que nunca esteve na "ordem implicada").
Infinito é também cada um dos pólos entre os quais se move o anjo: "entre dois infinitos", o poema", assim enuncia Derrida a trindade dinâmica que é a essência da poesia.
Seria ingénuo identificar estes "infinitos" com o sujeito da enunciação e o seu enunciatário (e mais ainda com o autor e o seu destinatário/leitor). Na verdade, cada um deles é desde logo em si mesmo a tríade que consigo se contrói.

Ao ler cada um destes poemas, se é evidente que me não consigo "apagar" e ver o que fica, também não é menos evidente que, na presença do anjo, algo em mim muda e é sobretudo o que muda em mim que como que abre uma fissura na pele deste universo infinito nela impossivelmente fechado (estou a parafrasear Traherne quando o expressa assim: "a universe enclosed in skin"). Algo de semelhante acontecerá do lado da criação, do acto que faz surgir o poem. Tocar-se-ão esses universos no ponto em que os toca o anjo?

Apenas tento, uma vez mais, uma aproximação do que continuo a ansiar compreender: o que chamo a "dimensão interpessoal" na forma desta tríade geradora do "campo" em que se configura o que é dito no acto de se dizer.

É o poema, belíssimo, intitulado "Um anjo" que me tem movido a reflectir sobre o mistério de que se faz poderosíssimo símbolo. Imponho-me resistir à tentação de lhe apreender um sentido (entre uma inexaurível multiplicidade de sentidos possíveis), sob pena de o reduzir ao enigma que não é.

...

Deixei a página aberta todo este tempo de interrupção. Desisti de reservar tempo sem cortes a esta actividade de pensar escrevendo, sob pena de, na sua falta, perder de mim esta forma de reflexão (no duplo sentido do termo) que me é tão necessária quanto ao "eu" é necessário o "tu" e o anjo a ambos. "Anjo perdido / na sombra da tarde". Para ambos, "risco de terra / no silêncio do mar".

Liberto-me da metáfora na visualização da imagem pura: a "sombra da tarde" sobre o "silêncio do mar"... ao longe (a que distância?) um "risco de terra". Reflexo do "anjo" (não espelha o mar o céu?)? De um "anjo perdido"? Não, não este (outro há, sim, mas não este). Simplesmente "perdido na sombra", como o "risco de terra" (perdido) "no silêncio do mar". Uma orientação, um rumo, um traço, uma palavra. Anjo. Poema: entre dois infinitos (perdoe-me o Derrida esta inversão abusiva dos termos).

Não posso deixar de transcrever o poema (certa de que o deixou incólume na sua beleza esta sua refracção no "espelho da minha alma"):

"um anjo perdido
na sombra da tarde

risco de terra
no silêncio do mar".


segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

o amor e o poema

Um tempo houve em que apenas abria a porta aos anjos que explicitamente enunciavam o desejo de d' Ele se aproximarem, pela sabedoria e pelo amor, desejo de que o meu se fazia eco; fechava-a , porém, àqueles que me pareciam perdidos e trancava-a aos que se me revelavam caídos. Um dia aconteceu que, obedecendo a uma vontade que não era a minha, a entreabri para acolher o que agora encaro como, afinal, todo o poema que a fixação de um sentido não destrói: liberto da mão que o cria, torna-se autónomo. Mas até que ponto se pode dizer que fala por si? Não corre ele o risco de falar por quem o acolhe, dizer o eco, sempre misturado com outros ecos, que encontra na casa que se lhe abre? Será tanto mais perdido quando assim se perde, ou, pelo contrário, tocado pela graça, encontra o caminho e aponta O que o orienta?
Isto leva-me de novo à triangularidade interpessoal envolvida no amor que, na hierarquia dos anjos, é representado pela ordem daqueles que por essa via tocam Deus.

Voltando ainda e sempre à poesia

Um conceito lato de poesia contemplaria toda a tentativa, feliz ou infeliz, de dar aos "anjos enviados lá fora" (como Traherne olha o milagre do pensamento enquanto fruto da prodigiosa faculdade de pensar) um corpo que à partida lhes falta (a falta é o rasto do que, no não ser, ainda ou já é). A felicidade ou infelicidade do poema é, evidentemente, indissociável da natureza desses anjos e do seu desejo de descerem à matéria de que é feita a linguagem. Poderei dizer que o poema em que essa matéria se liga, mistura ou funde com a da música e a da pintura mais se aproxima da plenitude a que os anjos aspiram? A do ser que, na sua perfeição, vêem acima deles? Poderei dizer que um poema é tanto mais feliz quanto substancia esse anseio? Mas que dizer dos anjos? Não os há caídos, perdidos? Almejam chegar a Deus como se Deus e o Seu Verbo, feito Homem, não fossem um.
Na recepção como na criação, a poesia é a totalidade de corpo, alma e espírito em que se tornou o anjo que, uma vez enviado, fala por si. Apenas é preciso saber acolhê-lo: tocá-lo, ouvi-lo, senti-lo. Para tanto é necessária, como na vida (ou não fosse vida a poesia), toda uma preparação, todo um caminhar. Não bastam o saber e a experiência, que nada são diante da graça. Só esta, como Deus, basta. Mas o Espírito, não é coisa de que se possa fazer pertença. Mas o Seu acontecer deixa sempre um rasto, uma marca, um sinal. Por esse sinal O reconhecemos.
Muitas vezes, como Silesius o verbalizou num epigrama, se ficamos cegos por olharmos o Sol, não nos podemos queixar do Sol, mas dos nossos olhos.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Ave Maria

Hoje, dia oito de Dezembro, a Igreja celebra mais uma festa a Maria, a da sua "imaculada conceição". Ante o mistério da graça a evidência torna redundante o dogma e as justificações teológicas são excrescentes. Bastam as palavras do anjo "Avé Maria, cheia de graça".

sábado, 5 de dezembro de 2009

libera nos a malo

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

perder-me de mim

"A foil unto thy Bliss", escrevia Traherne a respeito do mal. Procuro olhar não as trevas com que a tempos me confronto neste peregrinar pelo mundo, mas o esplendor, que o contraste intensifica, da luz divina na alma que a espelha. Que felicidade ("Bliss") é perder-me de mim na sua contemplação, lá onde ela brilha, num poema como num olhar.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

o desapego

A casa renova-se como se voltasse a estar em construção, a cheirar a tinta fresca e ao cerne da madeira, como há vinte anos quando a vi erguer neste pequenino quadrado de terreno em que plantei árvores de tão grande porte, que agora quase a escondem do exterior, voltando-a toda para dentro. E é dentro que, lentamente, uma nova ordem vai surgindo, a figurar a que a minha alma reclama nesta tão conturbada fase da viagem em que a premente necessidade de renovação interior contrasta com o desgaste exterior que parece acelerar-se.
Cada vez mais encaro o processo natural do envelhecimento como uma coisa feliz, sendo conforme à Sua vontade. Mas sei que só verdadeiramente o será se for acompanhado pelo desapego afectivo das coisas deste mundo, coisas que pelo facto de serem distintas dos bens de consumo ou de uso não deixam de ser terrenas e como tal pesadas. Um dia deixarei esta casa... porque me não hei-de desde já desapegar-me dela como me desapego da imagem que ainda há tão pouco tempo o espelho me dava de mim? Aprendo a gostar da que agora vejo, certa de que o desapego de que faço simultaneamente a aprendizagem de alguma forma transparecerá como uma luz que de dentro a ilumine, tal como a tenho visto em certos rostos que me comovem pela sua impossível beleza.