quarta-feira, 22 de setembro de 2010

«a falta é a fonte da Sua plenitude»

É da essência humana este estar in via e a tomada de consciência de que a viagem nunca teve um início leva ao mesmo tempo à certeza de que o mesmo se poderá dizer no que diz respeito a um fim. O que há é a via e quem a traça, infinitamente singular, único e irrepetível, num aqui que é já (e ainda não) o lá para que caminha.  Não havendo ponto de partida ou fundamento em que a viagem se alicerce, o que há, diz o Viandante é «apenas o entregar-se a ela, puro e livre». Penso na radical pureza e liberdade do olhar que Traherne recorda da primeira infância, visão que, por especial dádiva Sua, lhe persiste na memória.

Quando esta capacidade de «puramente ver» se alia ao discernimento da maturidade será numa ainda maior claridade que «o universo» se dá a ver. É o desejo  de o dar a ver, de o dizer, que move Traherne à fala e à escrita. «Were there no Needs, Wants would be wanting themselves: And supplies Superfluous», diz, reportando-o ao próprio Deus: «Want is the Fountain of all His Fulness (...) He wanted Angels and Men, Images, Companions. And these He had from all Eternitie».
A alteridade, o outro, sendo intrínseco ao acto de dizer, é-o, portanto, à palavra, inclusivamente à Palavra divina ou não envolvesse ela a Trindade de Deus.

Mas será verdadeiramente  de um fundamento em que alicerçar a viagem a falta que sentimos e que temos a tentação de procurar suprir, mesmo sabendo inglório o esforço? O salmista ergue os olhos para a montanha que tem adiante e profere as palavras que lhe incutem a segurança que procura: «O meu auxílio vem do Senhor que fez o Céu e a Terra...» E é então que uma outra voz se faz ouvir que a sustenta e intensifica confirmando-as. Destaco os versículos: "Ele não deixa que o teu pé vacile", "Ele guarda as tuas idas e vindas agora e por todo o sempre". Sempre  por isto mesmo este salmo me maravilhou.

Quem tem a percepção da viagem tem-na também do que faz o seu mistério e o deslumbramento, quando ele ocorre (não só ante as coisas manifestamente felizes, mas também ante o que de bom se vem a revelar nas que nos podem ter parecido infelizes, penosas, ou mesmo dolorosas), é um testemunho seguro de que a via é já (e ainda não) o aonde ela conduz e de que, numa outra claridade, ela continua.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Alguns, como T. Traherne, são capazes de remontar no tempo até aos primeiros meses de existência. O testemunho que invariavelmente dão da visão que esta faculdade lhes proporciona corresponde sempre a  pontos ou momentos de um percurso de vida, ou viagem, que reconhecem acabada de iniciar  (colocarei no blogue que lhe consagro um belíssimo poema de Traherne a este respeito) sem que, todavia, lhes seja possível sequer imaginar que possa ter tido um início a "entidade" que, com o nascimento (ou mesmo a concepção) a inicia. Alguns admitem, por isso, sucessivos reinícios de sucessivas viagens, aqui ou algures.

Todas as interpretações que me parecem belas as olho por isso mesmo como reflexos, cintilações da Verdade que está  - e «mil graças» Lhe dou por isso mesmo -  para além de qualquer esforço de aproximação da sua compreensão. 
Como pouco ou nada recordo desse tempo mágico da primeira infância, apenas posso reunir um conjunto de pontos ou momentos significativos, alguns ao ponto de os poder olhar como reinícios, num degrau ou intensidade de existência superior, da viagem que me levou a esse patamar do salto quântico (autorizo-me ainda a recorrer a esta já velha metáfora, exausta pelo uso e abuso). 
Se um destes momentos pode ser determinante ao ponto de dividir o que se perspectiva do percurso num antes e num depois, outros apenas permanecem vivos na memória, tanto mais vivos quanto inesgotáveis na interpretação. Entre estes integro a única experiência de amnésia que me aconteceu experienciar. A nada posso atribuir a sua ocorrência, uma vez que estava então na força da vida e simplesmente acordara normalmente pela manhã com o sol a entrar pelo quarto, já nesta casa que agora habito. Inquestionavelmente continuava a ser eu mesma, porém sem saber em que "história" (ou viagem). Recordo-me do esforço com que me tentei "integrar" nas circunstâncias que, segundo alguns, me dariam uma "identidade" e que eram precisamente o que se me tinha "apagado" da consciência. Aos poucos lá fui recapitulando e recordo claramente as perguntas que me fiz: onde estava? com quem? seria casada? teria filhos? quem era eu? Fiquei, assim, claramente, com a ideia de o meu verdadeiro ser transcender as categorias narratoriais que me faziam protagonista e narrador da minha própria história. Curiosamente nem pela cabeça me passou levantar-me e olhar-me ao espelho. Também não me perguntei que nome ou que idade tinha. O que me fazia eu mesma subsistia inquestionável como se de sempre e para sempre. Claro que extrapolei a experiência para a passagem desse "limiar" que tendemos a encarar como terminus da viagem. Não faltam relatos da "vida além da vida" relativamente aos quais, como já disse, retenho os que me parecem belos. 
É sobre a beleza (o que ela é para mim) que verdadeiramente queria falar, glosando ao mesmo tempo o tema de reflexão que o Viandante me suscita.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

um dia por que dar graças

Hoje é também o dia do nascimento de alguém a quem Ele prodigalizou o dom raro e sublime da verdadeira poesia, aliado a uma imensa e por vezes quase intimidante (para quem, como eu, o deseja seguir) profundidade e elevação de pensamento. No fascínio que tudo isto me faz sentir Lhe dou graças hoje e sempre pelo milagre da sua existência e Lhe peço que cada vez mais lhe dê a viver o Seu amor e a fruir a Sua alegria. O mesmo é dizer que Lhe peço o que Ele sempre dá a quem com fé Lho pedir. Que o encha, pois, com o Seu Santo Espírito. Confiante na Sua infinita bondade Lhe peço que lhe dê também e por acréscimo saúde e forças para prosseguir a viagem aqui, sempre «de claridade em claridade». Há que sair de uma luz, para noutra entrar (escreve Silesius).  Não há sombras que a nova e mais esplendorosa luz não dissipe.

dia 8 de Setembro

Hoje é o dia em que se celebra o nascimento da Virgem Maria (faz todo o sentido que tenha sido escolhido o mês de Setembro quando o Sol entra na constelação da Virgem), aquela que O acolheu em si e O pôs no mundo, aquela que incondicionalmente Lhe disse  "sim". Diria que ter-Lho sempre dito por sua inteira vontade (e não porque não tivesse outra escolha) é o que a enche de graça e que o Anjo da Anunciação verbaliza na saudação. As profecias veterotestamentárias a seu respeito, nomeadamente a sua vinda ao mundo como a Virgem que «conceberá e dará à luz um Filho chamado Emanuel» simplesmente mostram que outros modos há de ligação entre os acontecimentos para além da causalidade e da ordem cronológica.

Encontrei neste sítio um texto de que certamente me será consentido tomar um excerto e trazê-lo aqui:

«No dia 8 de Setembro de cada ano, nove meses após a Solenidade da Imaculada Conceição, a Igreja comemora o nascimento da Virgem Santa Maria. Esta Celebração foi introduzida, no Ocidente, no Séc. VII e liga-se estreitamente à vinda do Messias, como promessa, preparação e fruto da salvação. Celebremos com alegria o nascimento da Virgem.[...]
A primeira vez em que aparece Maria no Evangelho de São Mateus é no fim da genealogia de Jesus: "Jacob gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado Cristo" (1,16). Em São Lucas, aparece pela primeira vez no relato da Anunciação do Senhor. Em São Marcos e São João, só mais tarde, durante o ministério público de Seu Filho. Em todo caso, Maria só entra no Evangelho em vista de Jesus, como Mãe do Salvador. Embora se note a presença de Maria em muitas páginas dos Evangelhos, mormente de São Lucas, é tão discreta e velada a ponto de desaparecer na do Filho.

Perde-se e desaparece a vida de Maria na de Jesus. Ela viveu verdadeiramente oculta com Cristo em Deus. Viveu na sombra não só durante a infância, mas também depois, quando Mãe de Deus, até nos momentos de triunfo do Filho e até quando certa mulher, entusiasmada com a pregação de Jesus, ergueu a voz em meio à multidão gritando: "Feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram!" (Lc 11,27).»

(A imagem que colhi na net está demasiado difundida para lhe encontrar a origem, por isso serei apenas mais alguém a apropriar-se dela).

a narrativa como instrumento de aprendizagem

Entre o haver que «dar tempo ao tempo» do início e  o haver, cada vez mais, que  pedir tempo ao tempo do agora decorre, afinal tão aceleradamente, esta viagem, estando porventura nesta tomada de consciência um sinal da aproximação da chegada ao destino.
«A casa de meu Pai tem muitas moradas», disse Ele. Meditando estas palavras acredito que nos tem reservada uma, onde, feita a recapitulação do que aprendemos, se iniciará um novo "programa" de uma aprendizagem verdadeiramente personalizada. É uma forma tanto quanto possível racional de perspectivar os «insondáveis desígnios de Deus» (evoco as leituras de Domingo passado) sem violentar os princípios de que uma certa forma de tradição cristã fez dogma. O próprio S. Paulo fala num avanço «de claridade em claridade» até à Luz da luz.
A ideia de reencarnação neste mesmo mundo parece-me tão sombria como a de "purgatório", sendo, naturalmente, uma coisa e outra, meros modos de perspectivar o que está para além da nossa possibilidade de entendimento.
A narrativa, na perspectiva a que chego, é inescapável porque é, nesta perspectiva, um instrumento de aprendizagem. O livro por que aprendemos descobrimos um dia ser aquele que escrevemos, não podendo ser mais personalizada a aprendizagem feita. «Se mais quiseres ler, torna-te tu mesmo a escrita», diz A. Silesius no fecho. 
Claro que esta perspectiva me é imensamente grata. (Continuarei num próximo post).


sábado, 4 de setembro de 2010

"sair de mim" apagando-me

Hoje de manhã olhei para a data no canto inferior direito do monitor  e vi 8 em vez de 4 de Setembro. Sem ponderar no quanto era estranho, mesmo no esquecimento do calendário, o tempo "saltar" assim, escrevi um post, que deixei em rascunho, sobre o carácter especial desta data.

Havia, porém, aspectos que queria abordar antes de falar do dia muito apropriadamente escolhido (no séc. VII) para a celebração do nascimento da Virgem, dia que se tornou particularmente importante neste meu percurso de aprendizagem feita por via da descoberta e  da revelação (também na vida pessoal de cada um de nós acontece o efeito preceder a causa e instaurarem-se outras ordens de conexão, como a da «sincronicidade», que há tempos referi aqui). Desejaria, pois, que me fosse dado não só o ensejo, mas também aquela disposição de  espírito - verdadeiramente de todo o ser - que Traherne descreve como  «[being] set in frame» para trazer aqui aqueles aspectos que se me afiguram cruciais no que, se aceitar em paz que a "viagem" é simultaneamente a narrativa que dela faço (e refaço), corresponderá nela ao "plano da realização temática".

Um desses aspectos é o que decorre da posição de "enunciatária oblíqua" face a um "sujeito da enunciação" que, não se me dirigindo directamente, me abre a que o escute. Cada  diferente modo de poesia com que me fui deparando deu-me a entrever como destinatária uma silenciosa figura feminina com que me relacionei de muito perto, não sendo o seu silêncio  impeditivo de que lhe sentisse a presença e lhe escutasse o que, «feito de silêncio», por vezes aconteceu dar-me que dissesse. 
Será que conseguirei trazer cada uma delas aqui? A cada uma atribuirei um nome próprio de algum modo significativo. Serão Maria, Inês, Laura, por esta ordem. Qualquer delas me apaga como eu mesma como se de mim apenas fosse requerida a mediunidade vialibizadora de uma porventura maior aproximação. 

Terei encontrado, afinal, uma forma de, em certa medida, sair de mim mesma para me aproximar, por etapas sucessivas, do "outro privilegiado" como aquele, que, na derradeira etapa, n' Ele encontrarei, finalmente à Sua imagem. Serei, então, eu mesma e entoarei, na Sua alegria, as palavras do Cântico dos Cânticos: «Eu sou para o meu Amado e o meu Amado é para mim».

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Descentração

Não veio, porém, através de um poema o que tenha sido sair de mim mesma.  Aconteceu quando não fazia ideia do que tal fosse, há mais de trinta anos, quando era pequenina a minha primeira filha e toda a família foi com ela ao jardim zoológico. Atraiu-me um animal de que ninguém se abeirava, talvez  por isso mesmo.  De repente fiquei só diante dele e em pensamento acariciei-o, certa de que nunca ninguém o teria jamais feito ou desejado fazer. Há animais de quem ninguém gosta...
Tenho evocado muitas vezes este momento em que mais do que um encontro de olhares aconteceu tocarem-se os olhos, no sentido em que Derrida usa a expressão na pergunta que tanto me fascina («quando os nossos olhos se tocam, é dia ou é noite?»). Como, se não formulando-o assim, posso dar conta do que experienciei? Foi como se estivesse de repente naquele animal (ou ele estivesse em mim),  por detrás daquelas grades, naquele espaço exíguo e vazio, sem mundo. Um ténue vislumbre da experiência, reportada a Siddhartha, que li mais tarde narrada por H. Hesse no livro com o mesmo nome (de que se pode ler  aqui a tradução inglesa). Destaco um breve trecho: 

«A heron flew over the bamboo forest--and Siddhartha accepted the heron into his soul, flew over forest and mountains, was a heron, ate fish, felt the pangs of a heron's hunger, spoke the heron's croak, died a
heron's death.»

Nessa altura ainda não tinha consciencializado o que mais tarde descobri designado por scrying, sendo dessa natureza a paisagem de carvalhos e sobreiros que interseccionou aquele espaço. Ainda tenho na memória o solo coberto de folhas secas a deixar ver aqui e ali a terra escura  e solta e  faixas do sol poente que penetrava através dos troncos. 

Afastei-me com a tristeza de nada poder fazer para o devolver ao mundo que  era o seu. Tinha, porém, experimentado algo de novo e de maravilhoso  que não pude, então, compreender. Não me surpreende que  tantas vezes se configure a imagem deste animal nessas aventuras  do olhar que por vezes acontecem ao olhar o escuro.
Se o fundo do olhar de um animal me pôde descentrar de mim, como o não fará o que de insondável me fascina em certos poemas, por isso mesmo especiais? 

sonhos especiais

Tal como os sonhos recorrentes e/ou simbólicos relativos a esta dimensão da existência (como a onda sísmica e a águia), os que me levam a uma outra (apenas sei não ser esta) são marcados por três características fundamentais, extensivas a certos «acontecimentos » na vida dita "real": ficam para sempre vivos e nítidos na memória, são estruturados como símbolos e ligam-se como episódios de uma narrativa, sem analepses. 

Por muito maravilhoso que seja, sinto quanto é elementar tudo o que aprendi, sem nunca lograr  sair de mim mesma (mesmo naqueles em que surge alguém, que há muito partiu deste mundo,  a  quem dou conta do que vou descobrindo que posso fazer apenas com o pensamento e que me responde com um sorriso confirmativo). Porventura  será aqui que tenho de prosseguir na aprendizagem da descentração e centração n' Ele, para finalmente n' Ele encontrar o que me falta conhecer. Sustento a convicção de que a via mais propícia é a que um poema pode abrir. Como não hei-de alimentar esta convicção se com diferentes modos de poesia Lhe aprouve  assinalar os sucessivos ciclos de aprendizagem feita e a fazer nesta dimensão?