sexta-feira, 30 de setembro de 2011

a «rosa trocada»

O título do célebre prefácio de W. Benjamin à tradução que faz de Baudelaire,«Die Aufgabe des Übersetzers», desde logo denuncia o paradoxo da tradução. Na verdade, não há tradução para "Aufgabe" que sustente o duplo sentido de ”tarefa, incumbência” (o sentido comum do termo, no contexto escolar, "trabalho de casa") e “desistência, abandono” de tal tarefa (do verbo "aufgeben", "desistir de"). Paul de Man (1989) e também, de passagem, Jacques Derrida (1987) reconhecem este duplo sentido no título do ensaio. Para Paul de Man trata-se de uma tautologia: tarefa e desistência do tradutor: «o tradutor tem de desistir de redescobrir o que estava no original».
Fundamental neste ensaio é a percepção de que, a partir do acto inaugural da sua escrita, o poema continua a viver, tanto no sentido de "Fortleben", a sobrevivência que decorre de ser mantido em circulação, mas também e sobretudo no sentido de "Überleben", a "sobrevida" que lhe advém de, nessa circulação, não só continuar vivo, mas crescer e amadurecer: «viver mais e melhor , acima dos meios do seu autor», nas palavras de Derrida (1987). Nesta sobrevivência ou continuação da vida e nesta "sobrevida" ou vida para além da vida, têm um papel não só a leitura e a "glosa" (uso este termo como um hiperónimo para o que é dito sobre o poema), mas também a tradução.
Vejo postas em relação as três faces do "acto poético" (se assim as posso encarar): o acto primeiro e inaugural da escrita, que é, sublinhe-se, o momento criativo por excelência; o acto segundo de leitura (glosada ou não), que, tornando o texto de novo discurso, o revivifica; o acto de traduzir para outra língua o metatexto resultante deste acto segundo: a «arte de traduzir», diz Eugénio de Andrade (1980, «cabe toda nas três palavras que descobri num verso de Neruda: trocar de rosa». 
Daqui decorre que é preciso que o tradutor seja poeta para traduzir um poema. Se o não for, mais vale, como Benjamin o assume relativamente a Baudelaire, impor-se a mais literal das literalidades que vai ao ponto de até a ordem das palavras respeitar. E a musicalidade? - é a pergunta que fica.

Tanto que reflecti sobre este ensaio e sempre me escapou, afinal, algo de tão crucialmente essencial quanto pela "falta" manifesta a sua agora fulgurante presença.
Se a "arcada" persiste é porque não foi construída, apenas  algumas pedras foram reunidas e alinhadas no chão, uma ou outra susceptível até de se tornar "pedra de tropeço". 
A arcada não é apenas o espaço aberto no muro, é em si mesma uma obra de arte - a "rosa trocada" -, irredutível à obra de engenharia que apenas lhe assegura o suporte e passa despercebida.


segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O Outono dourado

Não é só a aceleração do tempo. São as descontinuidades, os saltos. Abrem-se abismos no que aparenta ser a linearidade temporal. Este comboio não corre sobre carris, ou, se corre, é de repente catapultado para a estação adiante, sem ter passado pelo espaço intermédio, como o electrão no interior do átomo.
A antecipação da reforma apresenta-se como uma libertação, nas circunstâncias, como a felicidade. A penalização salarial, ainda que máxima fosse, seria sempre ridícula ante tamanho bem. Se cheguei a pensar pedir uma licença sem vencimento...
Porém, uma vez alcançada, um espesso nevoeiro se interpôe diante da perspectiva luminosa que a apresentara como uma sabática a prolongar-se por uns largos anos, dedicados ao estudo, à leitura, à escrita. Não contara com a verdadeira penalização, a mais pesada, a que me rouba, de uma outra maneira, os anos que me teriam sido roubados (literalmente, pois que não sobreviveria) pelo trabalho nas condições insustentáveis de que a memória basta para, até ao último dos meus dias, Lhe dar graças por me ter libertado.

Vou tomando, porém, uma cada vez mais clara e dolorosa consciência de que terei, de novo, dado um salto no tempo, comparável ao que dei aos vinte anos quando, de repente, deparei com o fosso que se abrira entre mim e as amigas com quem até aí partilhara os risos e as brincadeiras dos "verdes anos". Ficou-me para sempre gravado na memória o dia em que estaquei a meio de uma das minhas corridas pelo corredor da Faculdade (andava sempre a correr) ao ouvir as suas gargalhadas atrás de mim. Riam da figura que eu fazia, esquecida de que estava já no sexto mês de gravidez. Se me sentia tão leve na plenitude biológica que tal representava para mim.  Naquele momento, porém, aferi o que verdadeiramente representava para "os outros". Sim, os outros. É face ao "outro" que é medido o salto. Se para mim eu ainda era a mesma... No entanto, deixara de pertencer ao seu mundo. Tinha passado para "o outro lado". Para o lado dos que «casaram e foram felizes para sempre» das histórias infantis? Não. Para o lados dos que  «casaram». Ponto final.  Nesse mesmo ano comecei a trabalhar. Um mundo onde eram bem nítidos os dois lados. Nunca me consegui integrar no meu. (Hoje questiono-me se alguma vez terei verdadeiramente pertencido ao outro. Diria que não).
É, pois, a segunda vez que vejo encurtado o tempo, já de si tão célere. Fica a impressão de que assim como o Verão me roubou a Primavera, assim o Inverno me rouba o tão ansiado Outono. As suas cores quentes, a sua luz dourada. A colheita. A Vollendung. Desejando fruí-la como não desejei nenhuma outra antes, vejo-me destituída dela, como outrora da Primavera. Assim como me foi antecipado o Verão com o casamento e maternidade, assim me é antecipado o Inverno com a reforma. Terei puxado demasiado depressa o fio da história que me contava a minha avó?

(A foto é de F.M., que me autoriza a colocá-la aqui).

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

«consciousness takes the place of imagination»

Ainda tinha na prateleira um livro de Paul Auster, que comecei a ler, só por ter terminado o anterior. Trata-se de duas narrativas (non-fiction) em torno da morte do pai, com o título The invention of solitude. Não contava encontrar mais do que uma ocasião de confronto com a minha própria experiência, em simetria, ou seja, de filha relativamente não à mãe, mas à avó, neste papel): «When the father dies (...), the son becomes his own father and his own son», escreve A. (Auster designa-se pela inicial, nesta narrativa na 3ª pessoa). Não será bem assim.  O que senti na altura é que ela me passava o "testemunho" que um dia me pertencerá passar - a quem, não sei ainda - a assegurar uma continuidade não sei ao certo de quê, porém transmitido por "linha feminina".

Não sendo de maneira nenhuma este o tema que me motiva agora, não deixei de estranhar a "indicação" a que lesse agora este livro, o que fiz, na falta de outro mais motivante. Como no plano da vida, também no "plano de leitura" intervém uma como que "vontade" alheia à minha - o "anjo da guarda"?-, que toca de "maravilhoso" o que chamo "realidade". Ontem, ao deparar com uma citação que Auster faz de um autor de mim desconhecido, reconheci o porquê daquela "indicação". Não só encontro a verbalização clara do que com cada vez maior força da evidência se me manifesta, mas a sua confirmação no que toca ao "anjo" que me guia:

«In the presence of extraordinary reality, consciousness takes the place of imagination

Escolhi a imagem que colei acima por me parecer alusivamente simbólica, sendo mais um "trabalho" da máquina fotográfica (do telemóvel) em "vidro sobre desenho", no mesmo dia do outro que há dias aqui coloquei).

domingo, 11 de setembro de 2011

orbes subtis

Acabo sempre por atender ao que se coloca no momento e vou deixando ficar os "temas" (chamemos-lhes assim), que figuro na imagem de uma "orbe" de um material tão subtil e delicado que tomá-la nas mãos me enche de temor. Nem sei até que ponto não terão sido já sobejas as vezes em que, tendo querido tocá-la, o fizeram desastradamente, com que consequências não sei. Escusado será dizer que tanto maior é o meu temor quanto mais preciosa ela é aos meus olhos. Deveria bastar-me contemplá-la nas Suas mãos, como longo tempo o fiz.

sábado, 10 de setembro de 2011

oração

Experimentando uma inelutável dificuldade em me "centrar" na oração, não deixo de perseverar em cada manhã. Já deixei há muito, nesta aceitação, de recorrer a "expedientes" como os que são sugeridos em livros de espiritualidade, como Centering prayer, em que Keating faz uma adaptação à mentalidade de hoje dos ensinamentos da Nuvem do Não-saber, ou em Mostra-me o Teu rosto, de I. Larrañaga.  Belos, continuarão a ser, sem dúvida. Ainda posso "ver" o rio - que serei eu mesma, mais do que a minha «corrente de consciência» - arrastar no seu caudal troncos, galhos, folhas caídas, tudo o que simboliza o que me dispersa. Mas agora não se trata de dispersão. O que me descentra não me dispersa, nada sendo que o rio arraste. Direi ser água, a mais pura água que só do Céu lhe pode vir. E se uma imagem me é dada, é a de um lago no coração da floresta.
Ofereço-Lhe, então, por inteiro, nesta oração tão pouco ortodoxa, as águas deste rio que na planície se espraia.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

«Dir zur Feier», am achten September

Rosa Mystica- Litany of the Blessed Virgin Mary (Malayalam)

Powerful litany song to praise Jesus through Mary!



On this day




n This Day, O Beautiful Mother

Refrain:
On this day, O Beautiful Mother!
On this day we give thee our love;
Near thee, Madonna, fondly we hover,
trusting thy gentle care to prove.

On this day we ask to share, dearest Mother,
thy sweet care;
Aid us e'er, our feet astray, wandering from
thy guiding way.

Queen of Angels, deign to hear, thy dear
children's humble pray'r;
Young hearts gain, O Virgin pure, sweetly
to thyself allure.

On this day we ask to share,
Dearest Mother thy sweet care
Aid us ere our feet astray
Wander from thy guiding way

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

voltando à metáfora: xy e a lateralidade cerebral

Na metáfora de D. Bohm, ao puxarmos por um fio da «ordem implicada» não só vêm com ele muitos outros do todo a que pretendemos arrancá-lo para o podermos observar na «ordem explicada», como a maior parte se quebra, só vindo à tona os mais fortes e os mais superficiais. 
Talvez, tomando agora a metáfora da lateralidade cerebral, haja uma desistência da parte do hemisfério direito que se queda na contemplação da imensa complexidade pressentida (uma como que entrega ou abandono ao espanto, temeroso ou maravilhado, sem respostas e, portanto, sem perguntas), enquanto o esquerdo interroga, inquire, investiga, quase sempre a partir da resposta que antecipa. Alguns usam esta metáfora dita científica (não será só uma questão de linguagem?) na explicação do diferente pendor do pensamento dito oriental, orientado para o todo, e o pensamento dito ocidental, orientado para o fragmento, para o fio que puxa, estracinhando a quase totalidade dos que lhe estão ligados. Levada a analogia ao extremo, tudo estando ligado a tudo, se assim não fosse, seria a própria totalidade que viria à superfície (ao encontro da metáfora do mar numa gota de água dos nossos místicos ou da fiada de pérolas em que cada uma reflecte em si todas as outras do misticismo oriental). Que fazer? Bohm, ao fim e ao cabo, advoga o que, na metáfora dos hemisférios cerebrais, equivaleria a dar a prioridade ao direito, para, a partir da sua abertura à impossível «compreensão», o esquerdo partir desta  como dado assente (a impossibilidade de compreender a totalidade mais evidencia a sua suprema relevância), contando, na observação, com o "espaço" conferível ao que não foi trazido à tona.  
É difícil resistir à sedução das relações que, sempre dentro do metafórico, se oferecem nesta perspectiva. Dir-se-ia que o próprio homem - xy - cumprirá tanto mais perfeitamente a sua essência quanto mais perfeita for nele a conjugação do que nele é x e do que nele é y, tal como da conjugação perfeita dos dois hemisférios resulta o poeta-filósofo que não desdenha tomar da enxada e trabalhar a terra ou tomar da palavra e ensinar multidões (ainda que reduzidas a um ou dois). 
Não dissimulo que vejo em Jesus «o arquétipo» da perfeição masculina.
Fica, naturalmente, a pergunta: e o que se passa no que diz respeito à mulher, se biologicamente não tem y? Esta pergunta faz-me pensar nos sistemas de equações, que se resolviam sempre "em ordem a x" (podendo, obviamente, resolver-se do mesmo modo em ordem a y), que ficava à espera enquanto y se envolvia na dança do cálculo.
Os biólogos, como observei num post anterior, parecem "andar às aranhas" com as descobertas feitas (felizmente parece ser como andam, cada vez mais, os homens ditos "de ciência" nas respectivos «habitáculos»). O desenvolvimento que é agora feito da metáfora xy /xx é muito mais complexo e as possibilidades de interpretação simbólica multiplicam-se no terreno virgem recém-aberto. Ainda bem.
Tenho, naturalmente, uma desproporcionada preferência pelas metáforas da linguagem e pela «simbólica que se inscreve nos mitos». 
Deixarei o que se me propuser dizer para um novo post, já que este se está a alongar demais.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

uma casa na floresta


A "casa" não é necessariamente o espaço físico que ela ocupa, por isso, mesmo com descontinuidades e "saltos" neste plano de existência, ela persistirá num outro. Se vejo envolto numa luz dourada um tempo em que o espaço físico da "casa" se mantinha o mesmo ao longo das gerações, tenho consciência de que serão os meus olhos que a projectam como aura de um símbolo. 
«Entra, se vens com Deus», reza o azulejo azul que a minha tia-avó colocou diante de quem entrasse pelo portão. Ela é, de algum modo, agora - como sempre o foi -  aquela casa. Sempre, ao ler estas palavras, era da sua boca que as ouvia, saudando e acolhendo quem chegasse. Agora é como se a própria casa as proferisse. Num outro, uma quadra termina assim: «amigos, a casa é vossa, ainda que lhe chameis minha».
O quartinho da "varanda", em que se abre esta janela, passou a ser um lugar de oração não só em sua memória, mas na de todos os que estiveram ligados a este lugar e por um tempo o habitaram ou o fruíram como retiro, mesmo quando a floresta, que em tempos idos o isolava do mundo, recuando, o deixou a descoberto, exposto a quem passe na estrada.  Térrea, quando a abriram, esta assim permaneceu longos anos até acabar asfaltada, como é hoje. 
A norte, porém, a nova floresta - por metonímia, dada a sua diminuta área -  é promessa de o voltar a abrigar no seu puro seio. A Sul, em redor da velha tília, a outra estende-lhe os braços, na ânsia do desejado encontro.


Se não houver de acontecer,  outra coisa, sem dúvida melhor, Ele prodigalizará. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

"omen"

Esta imagem surgiu numa fotografia que tirei a um quadro em que um vidro protegia o desenho carinhosamente emoldurado pela minha mãe (muito valorizava ela estas nossas ofertas, mesmo quando deixámos de ser crianças e a «tarde (em pleno)» se começou a tornar «ocaso». As aspas devem-se ao facto de serem os nomes com que intitulou os álbuns em que, com a disciplina que a caracterizava - ordenou, numa sequência cronológica, os testemunhos fotográficos de toda uma vida.  Diria que só pelo correr do tempo a via como percurso, caminhada no sentido do envelhecimento e da morte, e não caminho de maturação espiritual, de gestação da «nova criatura» a dar à luz na hora aprazada.  De tão contrário ao meu próprio sentir, o seu saudosismo da juventude perdida nunca encontrou eco em mim.
Esta imagem é anterior ao sonho que tive, pouco tempo após a sua partida, em que, consumida num incêndio, da casa de Poiares restavam ruínas fumegantes, a céu aberto. Na altura, achei singular. Agora dou-lhe como título a palavra inglesa "omen" ("presságio" não diz o mesmo). O desenho original (que só teria conseguido fotografar se me tivesse dado ao trabalho de retirar o vidro) representa, num fundo neutro (não o interior de um quarto), uma árvore nua, caída por terra, de que as raízes tomam a vez dos ramos no gesto de erguerem ao céu as mãos despidas.