sábado, 26 de março de 2011

A catedral submersa



«But it is said that those who are pure of heart who stand at the sea's edge can still today hear the one hundred bells chiming beneath the waves. It is also said that the Cathedral rises from the depths of the sea every hundred years, for only a few moments, before disappearing back into the sea.» (cf. texto informativo que acompanha o vídeo que incorporo abaixo):

ordem, comunidade, elite espiritual (2): o desejo de «trabalhar na catedral»



Se o isolamento, a impressão viva de não pertença ao grupo em que me encontro tem sido uma constante na minha vida, o desejo de «trabalhar na catedral ausente» cedo se começou a delinear. Esta expressão de Rilke deparou-se-me no ensaio sobre Rodin (o texto sobre o qual ainda comecei a escrever a minha primeira dissertação, aquela que abandonei, quando foi retirada do curriculum).  Retirando a expressão do seu contexto, aplicava-a ao meu impossível desejo e o motivo - a catedral distante, submersa, em chamas, em ruínas - era uma constante nas pinturas catárticas a que me entregava nos momentos  a sós comigo, na década de 80  (coloquei aqui uma, com reminiscências ainda vivas de Antero, o poeta da minha adolescência). 
O tema de Debussy, porém, já de muito antes o privilegiava (em criança, tantas vezes pedi à minha mãe que a tocasse no piano). Vou procurar no You Tube uma interpretação que me agrade para trazer aqui.

A recapitulação, como tantas vezes o tenho dito,  «inventa», no sentido (derrideano) em que faz vir ao aqui e agora o que foi «já» (o «ainda não» que o «por vir», vindo, torna "já então"). Vejo agora que, depois da "experiência" de 1994, a ausência tem-se-me progressivamente vindo a revelar como uma forma, não menos intensa, de presença. Na verdade, a catedral esteve sempre «aí». Nunca deixei de lhe ouvir os sinos. Hoje, diria que apenas tenho de fazer silêncio em mim para os escutar no vento, na brisa suave. Mas é preciso que sopre. E dias há em que são outros os ventos e o que me trazem.

terça-feira, 22 de março de 2011

sobre o encontro em Fátima

Ontem, o dia da Primavera, é também o dia do aniversário do meu pai, que partiu  no Outono de 2005.
Como nada escrevi, venho aqui pôr esta nota a remeter para o post que a minha irmã colocou no seu blogue neste dia. É de ver também o freixo agora em toda a sua beleza aqui.

A experiência de três noites (de 17, 18 e 19 do corrente) fora do habitat que construí para mim representou algum desassossego, de onde ter sido necessário deixar passar o resto de Domingo e todo o dia de ontem para estabilizar. Tempos houve em que fiz um ou outro retiro em Fátima, mas ia e vinha, o que, se por um lado me tranquilizava, por outro também revertia em agitação, quebrando o ritmo desejado. Tomei isto como um retiro embora não o fosse, muito insistindo nisso mesmo os organizadores. «O Espírito sopra onde quer», é consabido, mas não faz mal nenhum, antes todo o bem, predispormo-nos à eventualidade com a oração.
O mote era o «aqui e agora» e estava determinado que a tudo o que não tivesse a ver de perto com o momento presente não se daria voz. Assim se evitaram as prolongadas tomadas da palavra que sempre tanto me desagradavam  nos «grupos de partilha» e se travou a ânsia de protagonismo  com a  decorrente monopolização do discurso (ânsia nefasta que neutraliza a acção do Espírito e desagrega o grupo). A confinação ao "aqui e agora" seria a forma de "moderação" que levaria aos "grupos de oração" se o protagonismo não tivesse levado a melhor, institucionalizando o que não se pode institucionalizar.

A base teórica subjacente era a já velha «janela de Johari» (acrónimo dos autores Joseph Luft e Harry Ingham); para relembrar, fui buscar uma imagem à  net), que aqui coloco. As actividades estavam, pois, orientadas para a maior abertura ao próprio e ao outro. 
A facilidade com que me integrei sei muito bem que a devo à experiência que já tinha dos "grupos de partilha" e sobretudo ao ter já conseguido aliviar o rigidismo incapacitante que me tolhia (um tempo houve em que era com imenso esforço que levantava as mãos para dizer o Pai Nosso na missa e seria impensável sequer sair do lugar). 
O que trouxe para a minha caminhada pessoal? É cedo para o dizer pois estas coisas vêem-se melhor em perspectiva. De momento direi que vi em cada um daqueles para quem me senti mais atraída (mais uns do que outros, claro) a «pérola oculta» (em alguns «entre rochas profundas sepultada»), que procurei «trazer à luz do dia» (já que o clima era o de eliminar barreiras). Porém, se, num círculo alargado, todos pertencem, num círculo mais restrito, não senti que, à partida, nenhum deles  plenamente se integrasse na «comunidade espiritual» a que me sinto chamada, nada sabendo dela a não ser o pressentimento do que nos congrega e a certeza de que, estando dispersos, um dia confluiremos e nos encontraremos face a face.

quinta-feira, 17 de março de 2011

ordem, comunidade, elite espiritual (1)



O Evangelho do dia de hoje, Mat 7, 7-12, traz-nos aquelas palavras que muitos sabemos de cor, no sentido comum e etimológico do termo: «Pedi, e recebereis; procurai, e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á. Pois, quem pede, recebe; e quem procura, encontra; e ao que bate, hão-de abrir.»
Nelas encontro mais uma reiteração da dinâmica trinitária em que irrompe e em que intervém o Espírito que a gera. Dizer "Espírito" é  também dizer "graça" (no sentido do termo grego kharis), Seu dom e Seu fruto.
O que digo  - ou melhor, dizê-lo - nada mais é do que o traço desnecessário a unir os arcos em aberto no desenho do peixe com que se davam a reconhecer os cristãos nos primeiros tempos: um desenhava um arco na areia e o outro juntava-lhe o arco ao contrário, surgindo assim o desenho de um peixe (ΙΧΘΥΣ, «ikhtus», acróstico de Ἰησοῦς Χριστός, Θεοῦ Υἱός, Σωτήρ - Iesous Khristos Theos Uios Soter; "Jesus Cristo Filho de Deus Salvador").
De facto, o traço a unir os arcos onde o desenho é aberto é supérfluo, estando e não estando lá (o que é em si mesmo simbólico). O ponto de partida é apenas um ponto, que nem sequer tem existência física. O ponto de chegada é o que tem atrás de si todo o traçado. Significativo é, pois, que fique aberto. Não menos significativo é que  o seu traçar-se implique dois e O que os liga.

sábado, 12 de março de 2011

«Such faith can move mountains!»

Já de há muito tempo que, também "lá fora", procuro não atentar no mal como se, de facto, tal fosse uma forma de lhe assegurar a "energia" de que precisa para subsistir, energia esta que está nas mãos de cada um canalizar para o bem, sejam quais forem as circunstâncias.

O reconhecimento de este princípio de conduta não só não ser novo como ter-se já tornado um lugar-comum reforça para David Hamilton a convicção de que um cada vez maior número de pessoas o adoptou, estando, deste modo, a contribuir activamente com os seus pensamentos e desejos e palavras e acções (por eles ditadas), para uma mudança, que ocorrerá repentinamente, alcançado que for o «ponto crítico» (exemplifica com a gota de tintura que, de repente, tinge toda a água do balde, incolor um instante antes, sendo a que faltava para que se manifestassem as que já lá estavam diluídas).
Tocou-me neste autor a humildade, a simplicidade e o desassombro com que, quando a maior parte parece ter vergonha das suas próprias raízes, se não esquiva em as trazer à luz e deixar que brilhem num renovado esplendor de verdade. A este propósito, por exemplo, transcreve as palavras de Jesus relativas ao «apresentar a outra face». Na verdade, o não alimentar o mal com a energia nem mesmo de um pensamento, antes dirigi-la toda para o bem é, numa linguagem e contexto actuais, o que já está claramente dito em Mat 5:39; Luc 6: 29; Rom 12:20.
David Hamilton não deixa, ao mesmo tempo, de apontar que este princípio é comum a todas as religiões orientadas para o bem - e o mesmo é dizer para o amor, com ênfase na bondade, no perdão, na paz. Referindo por vezes Krishna e Siddharta (Buda), tacitamente deixa claro não ser intenção sua enveredar por caminhos que não domina como sejam os da "religião comparada".
Transcrevo do fecho do livro It's the thought that counts (palavras que toma de a mãe muitas vezes lhas ter dito) estes passos em que poderia estar a ouvir Thomas Traherne falando hoje entre nós:

But the most important aspect of your thoughts, feelings, words and actions is where they come from. Helping someone through genuine compassion, for instance, is far more powerful than doing so out of a sense of guilt or a desire to be recognized for your kindness. In the same way, intentionally crushing an insect has a destructive effect. It is the thought behind the act, however insignificant, that is important. It's the thought that counts.
(...)
Choose love, choose peace, choose kindness, choose honesty and extend your hand in forgiveness and trust. Let these new choices colour the actions of your life from this day onwards. Then you will see the beauty and magnificence that are already present around you and you will believe that everything is indeed perfect.
Such faith can move mountains!

terça-feira, 8 de março de 2011

«donde não pensamos, nos vem o proveito»

Pretendendo contrariar  o que ajuíza como alheamento e fuga à realidade, há quem opte por sobrevalorizar o que se passa no que poderia tomar como o nível básico,  o "nu e cru" dos aspectos em que cada indivíduo é «como todos os outros» (estou já a glosar o "mote" apresentado no convite para um encontro em Fátima em que penso participar sem saber o que seja) .
Se  fatalmente estes aspectos não deixam de estar envolvidos no que chamo «reencantamento do mundo» e que não é nem uma idealização nem uma sublimação do que nesse nível básico se me depara (e tento serenamente encarar como me não sendo alheio: nihil humanum...), serão como os  traços a lápis na tela que as tintas irão cobrir, constituindo um mero suporte funcional a que inteiramente se sobrepõe o que a cor, a luz e a sombra farão surgir.  Tais são os aspectos em que cada indivíduo - cada ser, seja de que natureza for - é «como alguns outros» e «como nenhum outro», tal sendo o que o faz especial, raro, único.
Compreende-se que, do mesmo modo, única, rara e especial seja a história de cada um, nas sucessivas versões que fará dela consoante o que, em perspectiva, se lhe for revelando, na certeza de que de adiante vem o que se lhe afigura ter sido,  ainda que o  não tivesse podido prever então. A reforçar cada estádio presente da narrativa  - e só ele existe - está o que lhe é, assim, propiciado ver do que foi, facilitando-se-lhe uma abertura expectante ao que do por vir é já. Não caminhamos para trás, nenhum rio regressa à nascente ainda que tudo seja água de um mesmo mar.
Nesta convicção, dia a dia reconstituo o caminho na forma da história de que houvesse de Lhe  houvesse de dar conta, sabendo que só mesmo Ele a conhece.
«É sempre bom falar de Deus, que, donde não pensamos, nos vem o proveito», escreve Teresa de Jesus (Teresa d' Ávila). De Deus ou de nós mesmos quando n' Ele nos buscamos (as palavras «busca-te em Mim» constituíam o mote do «Certâmen» de que Teresa de Jesus se viu forçada a aceitar a «judicatura»).

segunda-feira, 7 de março de 2011

sobre «o ruído que me habita»

Cito e medito: «encontrar o silêncio dentro do ruído que nos habita e que, demasiadas vezes, nós somos». 
Ansiando este silêncio, passei, porém, estes dias a reflectir sobre o ruído, este que me habita desde que, numa forma nunca experimentada antes, o deixei entrar e que ocupou a casa toda, como se aproveitasse o Ele a ter deixado vazia após o tempo em que O ouvia bater à porta e chamar. (E eu Lha abria e Ele entrava e não só ceava comigo  e eu com Ele como trazia Ele mesmo a ceia, verdadeiramente  «a ceia que recreia e enamora», como se lhe refere S. João da Cruz). Ficou a promessa de que voltará no dia em que eu mesma deixarei esta casa, agora tão cheia de ruído. Com a promessa deixou-me a certeza de que estará, não obstante, sempre comigo. Estará, sim, nesse «silêncio que habita o ruído» em que deverei «aprender a fazer a minha casa».
Vem-me à mente uma canção do R.C., demasiado infantil para lhe chamar cântico, que, glosando o versículo que tomei atrás - Ap: 3, 20 -,  designa por «o mal» o ruído que também bate à porta, também quer entrar, começando por apenas querer «um lugarzinho». Depois é Jesus que bate e «quer a casa toda», que Lhe é inteiramente oferecida: «oh sim, vem, vem aqui morar». Belíssimo é, em contrapartida, o cântico que toma por letra as palavras do versículo e torna ruído esta canção, ou não fosse a referência ao «mal», já de si, um ruído. Parece-me uma explicação aceitável para o horror que a Teresinha, então com quatro ou cinco anos, experimentava ao ouvi-la, horror que a levava a gritar «não, não, não» como forma de "calar", não as ouvindo, as palavras para ela  verdadeiramente cheias de ruído. Pressentiria ela que tarde ou cedo esse ruído haveria de entrar, e de assalto? T.T. dá conta deste mesmo assalto no poema «Dumnesse» (de que colocarei  um excerto no blogue que lhe dedico).
Credível me parece também a explicação que se me coloca para o facto de, há tanto tempo, ter deixado de praticar esse «exercício de me instalar no silêncio que habita o ruído»: a de que fará parte da ascese conducente ao «eu profundo» a sua aceitação. É como se, neste «tempo que resta», houvesse de realizar a aprendizagem de qualquer coisa mais, que, não sabendo o que possa ser, me suscita dúvidas, não d' Ele, mas de mim mesma) geradoras de interrogações que são, com as respostas que lhes vou encontrando, este ruído que me habita, tanto mais perturbante quanto me conduz ao reconhecimento de que sou (ou estou a ser) eu mesma esse ruído.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Já não há tempo e, todavia, há todo o tempo

Este paradoxo (de, já não havendo tempo, haver, todavia, todo o tempo) parece ter-se instalado neste «tempo que resta», com a decorrente ou concorrente impressão da continuidade da «via» num outro nível de existência ou de «vibração», nesse «meio» que tudo conecta a que prefiro chamar «meio divino» em vez de «campo quântico» (como o designam e concebem as actuais correntes científicas). 
Direi que esta impressão me desacelera, contrabalançando a celeridade em que vejo correr os dias num quotidiano cheio de tanto a que dar resposta, e me traz uma estranha tranquilidade  e com ela a certeza de que vivo, concomitantemente, num outro tempo em que tenho todo o tempo para conhecer e aprofundar o que, neste, apenas me é dado vislumbrar como possibilidade. 
Olho-o como uma outra forma de interseccionismo, à semelhança da que por vezes observo no espaço, quando, olhando o mar, vejo ao mesmo tempo uma paisagem de montanha, ou, tendo esta diante dos olhos, vejo concomitantemente uma enseada ou uma escarpa sobre o mar.
Transpondo para o plano da relação com «o outro» (já que em e com o « Outro» é aquela em que tudo  acontece), direi que me sinto não apenas induzida, mas conduzida a pressentir e, já e ainda não, conhecer a relação com o «outro» neste contexto de aproximação de «esferas de existência» a que é trazido.