quinta-feira, 25 de junho de 2009
A escolha da minha irmã em memória da nossa mãe é também a minha, assim como as suas palavras (com que intitulo este post).
quarta-feira, 24 de junho de 2009
"Que música é esta, mãe? Que lindo! Que lindo..."
Coloco aqui o quadro que estava a pintar quando acorri a Lisboa para me despedir da minha avó ou para ela se despedir de mim, porque parecia estar apenas à espera de que eu chegasse. Nunca o acabei (o primeiro plano está apenas esboçado) e foi também a última vez que peguei num pincel.
Já quase trinta anos decorreram desde então. No Domingo passado acorri a Lisboa, desta vez, pela minha mãe. Também ela aguardava que eu chegasse. "Liberta-a, Senhor, no teu Espírito", cantei no Seu silêncio. Meia-hora depois ela partia, já no hospital para onde a levaram.
Enquanto procurava encontrar a capela (já lá tinha estado antes) onde pudesse ficar sozinha na contemplação deste mistério que é "passar o umbral" (durante toda a semana senti o que poderia ser a aproximação das esferas de existência que naquele ponto e momento se tivessem tocado), chegou-me aos ouvidos o som de um piano em que alguém estivesse a tocar escalas. Quantas vezes a ouvira praticar assim! Há estas coincidências, pensei, simplesmente porque tudo está ligado a tudo e eu puxei o fio certo, na "ordem implicada".
A capela estava deserta. Da sacristia vinha o som, não do piano, mas de um canto gregoriano. Cheguei a duvidar que fosse uma gravação, pois que era a mais perfeita que já ouvi. Belíssimo o canto, belíssima a voz. Era, de qualquer maneira, uma "coisa feliz que caía" naquele momento, uma graça divina. Fazia tanto sentido que a música a acompanhasse... "Que música é esta, mãe? Que lindo! Que lindo..." Estas foram, reportadas pela minha avó, as últimas palavras do menino, o irmãozinho da minha mãe, que uma leucemia levou a passar o umbral aos doze anos (tinha ela nove). Seria esta música? Não escolheria outra como possibilidade...
Já quase trinta anos decorreram desde então. No Domingo passado acorri a Lisboa, desta vez, pela minha mãe. Também ela aguardava que eu chegasse. "Liberta-a, Senhor, no teu Espírito", cantei no Seu silêncio. Meia-hora depois ela partia, já no hospital para onde a levaram.
Enquanto procurava encontrar a capela (já lá tinha estado antes) onde pudesse ficar sozinha na contemplação deste mistério que é "passar o umbral" (durante toda a semana senti o que poderia ser a aproximação das esferas de existência que naquele ponto e momento se tivessem tocado), chegou-me aos ouvidos o som de um piano em que alguém estivesse a tocar escalas. Quantas vezes a ouvira praticar assim! Há estas coincidências, pensei, simplesmente porque tudo está ligado a tudo e eu puxei o fio certo, na "ordem implicada".
A capela estava deserta. Da sacristia vinha o som, não do piano, mas de um canto gregoriano. Cheguei a duvidar que fosse uma gravação, pois que era a mais perfeita que já ouvi. Belíssimo o canto, belíssima a voz. Era, de qualquer maneira, uma "coisa feliz que caía" naquele momento, uma graça divina. Fazia tanto sentido que a música a acompanhasse... "Que música é esta, mãe? Que lindo! Que lindo..." Estas foram, reportadas pela minha avó, as últimas palavras do menino, o irmãozinho da minha mãe, que uma leucemia levou a passar o umbral aos doze anos (tinha ela nove). Seria esta música? Não escolheria outra como possibilidade...
Deixo as fotos dos dois irmãos, agora reunidos.
quarta-feira, 17 de junho de 2009
"a realidade que se dá"
"De um momento para outro, tudo rui e a realidade mostra-se totalmente outra, surpreendente". Estas palavras dizem, por um lado, a inutilidade e vacuidade das nossas conjecturas e antecipações, tão efabuladas como as histórias de nós mesmos, que nos ocupamos a construir e desconstruir, na consciência de que mais não são do que isso mesmo: construções, efabulações; por outro lado dizem um como que deslumbrado espanto ante essa realidade que se dá, "totalmente outra, surpreendente".
No caso da "fábula mística" não se tratará de falar do inefável, narrar o inenarrável, conceber o inconcebível, como os místicos o pretendem, mas de dar conta de um tal deslumbramento. Só a poesia, porém, o pode fazer, porque não narra, antes diz, e dizendo dá a ver (David Bohm observa que o verbo inglês say é cognato de see, significando etimologicamente "dar a ver"). Não é apenas a visão que é envolvida, mas "todos os sentidos num só confundidos" (sempre achei feliz esta expressão de Garrett ). Místico é todo o poema que, deste modo, nos coloca em face dessa "realidade outra", não construída, não efabulada, mas dada a ver. São místicos os "poemas do viandante", dádiva retribuída a quem nela Se dá. Retribuída num transbordante excesso.
E , se, supreendentemente, deste transbordar Ele enche o meu lago, poderia eu ter esperado ou desejado o que fosse que a tal se comparasse? Não se tratará de nada esperar, nada desejar, mas porventura de orientar uma esperança e um desejo sem objecto para aquilo que for enviado. Que melhor preparação para o receber? "Desire" é para Traherne este desejo sem âmbito que o delimite, sem objecto, portanto, diferente do banal "wish", como "Felicity" infinitamente transcende a vulgar "happiness".
No caso da "fábula mística" não se tratará de falar do inefável, narrar o inenarrável, conceber o inconcebível, como os místicos o pretendem, mas de dar conta de um tal deslumbramento. Só a poesia, porém, o pode fazer, porque não narra, antes diz, e dizendo dá a ver (David Bohm observa que o verbo inglês say é cognato de see, significando etimologicamente "dar a ver"). Não é apenas a visão que é envolvida, mas "todos os sentidos num só confundidos" (sempre achei feliz esta expressão de Garrett ). Místico é todo o poema que, deste modo, nos coloca em face dessa "realidade outra", não construída, não efabulada, mas dada a ver. São místicos os "poemas do viandante", dádiva retribuída a quem nela Se dá. Retribuída num transbordante excesso.
E , se, supreendentemente, deste transbordar Ele enche o meu lago, poderia eu ter esperado ou desejado o que fosse que a tal se comparasse? Não se tratará de nada esperar, nada desejar, mas porventura de orientar uma esperança e um desejo sem objecto para aquilo que for enviado. Que melhor preparação para o receber? "Desire" é para Traherne este desejo sem âmbito que o delimite, sem objecto, portanto, diferente do banal "wish", como "Felicity" infinitamente transcende a vulgar "happiness".
terça-feira, 16 de junho de 2009
"Eu sou o Amor"
Quando Jesus diz “Eu sou o Caminho”, poderia do mesmo modo dizer "Eu sou o Amor". São esclarecedoras as palavras de S. Paulo (sobretudo depois de ler O tempo que resta) “não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim”. "Cristo em mim" é o caminho de amor que Jesus anuncia. E que é Cristo senão a ponte entre o humano e o divino (o que O faz Deus sem que deixe de ser Homem)?
"Vários são os caminhos e cada um só pode percorrer o seu próprio".
"Meu" é a forma de genitivo de "eu": o caminho de mim só eu o posso percorrer. O salmo 121 (com que comecei este blogue em 2005: "Levanto os olhos para a montanha") faz-me evocar o epigrama de Angelus Silesius (que o glosa, de que fiz o segundo post): "Sou uma montanha em Deus". O fascínio está em o caminho não estar traçado. Como poderia estar, se ninguém o percorreu nem pode percorrer a não ser eu mesma? Pode envolver subir a montanha, atravessar o deserto, cruzar o mar... Pode acontecer a maré subir... (queria tentar colocar aqui "La marée haute" cantada por Llase).
"Vários são os caminhos e cada um só pode percorrer o seu próprio".
"Meu" é a forma de genitivo de "eu": o caminho de mim só eu o posso percorrer. O salmo 121 (com que comecei este blogue em 2005: "Levanto os olhos para a montanha") faz-me evocar o epigrama de Angelus Silesius (que o glosa, de que fiz o segundo post): "Sou uma montanha em Deus". O fascínio está em o caminho não estar traçado. Como poderia estar, se ninguém o percorreu nem pode percorrer a não ser eu mesma? Pode envolver subir a montanha, atravessar o deserto, cruzar o mar... Pode acontecer a maré subir... (queria tentar colocar aqui "La marée haute" cantada por Llase).
Encontro segurança em recapitular e retraçar o rasto do caminho percorrido unindo "marcos" que assinalam reinícios numa nova claridade (os "anéis crescentes" do poema de Rilke são-no por isso mesmo, por ser crescente o seu âmbito de compreensão). O que os torna reconhecíveis como tal é comportarem o que chamaria a marca da Sua mão. Primeiro apenas a Sua. "Que se te dá a ti os outros?", escutou Teresa d'Ávila no início. Não pode transbordar o lago que se não encheu... Depois... o encontro com "o outro" revela-se inerente à via. O outro, também a caminho.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
"Eu sou o caminho"
Quando ocorreu o que apenas posso chamar "puro acontecer" é que tomei consciência de que todo o trajecto percorrido conduzia àquele momento. O que de mim poderia ter passado além não o posso saber ("a luz apaga-se se passa o umbral"). O que sei é que já não era a que fora até ali. Desci as escadas como se descesse a montanha de que tivesse alcançado o cimo sem ter consciência de lá ter estado. Em face de tudo o que se seguiu perguntei-me se o fim não estaria próximo. Causava-me espanto que estas coisas pudessem estar a acontecer e a acontecer comigo. Tudo era, no entanto, inerente ao início da viagem que verdadeiramente começava ali (todo o "antes" mais não fora do que a preparação).
A experiência, entendendo-a como caminho a traçar-se, haveria de acompanhar, senão mesmo a decorrer da escrita. E esta sempre na senda da poesia.
"Eu sou o caminho", disse Ele.
É este caminho que me faz caminhante e àquele que neste caminho encontro a quem estendo e que me estende a mão.
A experiência, entendendo-a como caminho a traçar-se, haveria de acompanhar, senão mesmo a decorrer da escrita. E esta sempre na senda da poesia.
"Eu sou o caminho", disse Ele.
É este caminho que me faz caminhante e àquele que neste caminho encontro a quem estendo e que me estende a mão.
sábado, 13 de junho de 2009
vida e escrita
Talvez tenha sido Poe, no conto"A queda da casa de Usher, (francamente não sei se teve precedentes) o primeiro a tratar na ficção o tema da ligação entre vida e escrita, entre a vida e a literatura. Recordo-me também de um filme em torno de D.H.Lawrence, em que os investigadores se viam a certa altura envolvidos naquilo mesmo que, dessa maneira, lhes ia sendo revelado da vida e escrita do autor em estudo. Num e noutro casos é como se se tratasse de uma outra esfera de realidade que, tocando aquela em que decorre a vida quotidiana, lhe conferisse aquele quantum de energia necessário e suficiente para que essa mesma vida quotidiana continuasse a decorrer do mesmo modo, porém num outro plano ou nível onde a fronteira com a escrita ou com a literatura se dilui ou mesmo desvanece.
Ao falar desta experiência tomo "experiência" no sentido que lhe dá Derrida: "frayage de la route (via rupta)", a via no seu abrir-se (este "se" ao mesmo tempo pronome apassivante e reflexo). Na vida como na escrita, na vida elevada ao nível da escrita, tudo pode acontecer.
Ao falar desta experiência tomo "experiência" no sentido que lhe dá Derrida: "frayage de la route (via rupta)", a via no seu abrir-se (este "se" ao mesmo tempo pronome apassivante e reflexo). Na vida como na escrita, na vida elevada ao nível da escrita, tudo pode acontecer.
quinta-feira, 11 de junho de 2009
Dia do Corpo de Deus: "Pange Lingua" de Victoria
Pange lingua gloriosi
Corporis mysterium
Sanguinisque pretiosi
Quem in mundi pretium
Fructus ventris generosi
Rex effudit gentium
Nobis datus nobis natus
Ex intacta Virgine
Et in mundo conversatus
Sparso verbi semine
Sui moras incolatus
Miro clausit ordine
In supremæ nocte cœnæ
Recumbens cum fratribus
Observata lege plenæ
Cibis in legalibus
Cibum turbæ duodenæ
Sedat suis manibus
Verbum caro panem verum
Verbo carnem efficit
Fitque sanguis Christi merum
Et si sensus deficit
Ad firmandum cor sincerum
Sola fides sufficit
Tradução:
Canta, minha língua
este mistério do corpo glorioso
E do sangue precioso
Que, do fruto de um ventre generoso
O Rei das nações derramou
Como preço da redenção do mundo
Dado a nós, por nós nascido
De uma intacta virgem
E no mundo vivendo
Espalhando a semente da palavra
O tempo certo da sua permanência
Encerrou no rito admirável
Na ceia da última noite
Reclinando-se com seus irmãos
Tendo observado plenamente
A lei da festa prescrita
Deu a si mesmo com as suas mãos
Como alimento ao grupo de doze
O Verbo encarnado, o pão real
Com sua palavra muda em carne
O vinho torna-se o sangue de Cristo
E como os sentidos falham
Para firmar um coração sincero
Apenas a fé é eficaz
http://www.audicoelum.mus.br/textos_e_tradu%C3%A7%C3%B5es_4.htm
domingo, 7 de junho de 2009
"Midwinter spring is its own season"
Leio mais uma vez o poema e (como acontece, aliás, com todos os "poemas do viandante") saboreio-o "na mais terna alegria" - aproprio-me destas suas palavras em que vejo desdobrar-se (no sentido em que D. Bohm faz uso de "unfold") o significado mais antigo de "enjoy". Sim, a alegria em que Ele Se compartilha, em nós fora de nós e connosco, na dinâmica trina em que tudo isto acontece. E o que é "isto"?
Trouxe ontem de Lisboa os quatro CDs de Tristan und Isolda (o meu pai tinha uma predilecção muito especial por Wagner, de que nunca cheguei a entender a razão profunda). Ansiava por ter uns momentos meus para, depois de eliminar todos os ruídos associados, de fora, ao homem que fez "isto", escutar, no maior silêncio, "isto" que ele fez. Conduzida pelo viandante, escutei, uma vez mais, mas numa outra forma, a "voz deste chamamento" na "atracção deste Amor"( "the drawing of this Love and the Voice of this Calling").
Muitas vezes contemplei o horizonte que me abria Traherne com as palavras "GOD never shewd Himself more a GOD, then when He appeared Man". Mais longe neste mistério da "dor de Deus" me levam agora estas palavras suas, que mo trazem à consciência, imersa na beleza radical destes acordes: "a dor de Deus feita música, uma dor que chama por nós na noite negra, uma dor que abre o mundo à terna alegria".
Quando pergunta "como é possível que um homem tenha feito aquilo? Como na pura imanência se inscreve a absoluta transcendência?", toca o mistério que as teorias da autotelicidade da obra parecem querer ignorar: o mistério de que, inquestionavelmente, um homem fez "isto" e em "isto" ele vive. (E que dizer da soprano?)
Ao dar voz às palavras deste poema, dou-a a quem nele fala e me fala - o Poeta, como Ele, tem este poder de se dar plenamente, a mim (e a cada um) como se fora única - ; mas dou-a ao mesmo tempo a mim mesma, numa enunciação que, na segunda pessoa, lhe/Lhe diz, com o alcance infinito da poesia, que "tudo está preparado".
"Midwinter spring is its own season": assim se inicia o quarto de Quatro Quartetos.
Não é esta "estação" a que é aguardada no poema? Virá e com ela as flores, quando a anunciarem os pássaros "e a névoa do inverno / deixar vir / a luz que nos resta."
Digo-Lhe: não foi da Tua vontade que fosse a Santiago... É então Little Gidding que me pões no horizonte? E dás-me um guia que não deixará que me perca senão em Ti.
Trouxe ontem de Lisboa os quatro CDs de Tristan und Isolda (o meu pai tinha uma predilecção muito especial por Wagner, de que nunca cheguei a entender a razão profunda). Ansiava por ter uns momentos meus para, depois de eliminar todos os ruídos associados, de fora, ao homem que fez "isto", escutar, no maior silêncio, "isto" que ele fez. Conduzida pelo viandante, escutei, uma vez mais, mas numa outra forma, a "voz deste chamamento" na "atracção deste Amor"( "the drawing of this Love and the Voice of this Calling").
Muitas vezes contemplei o horizonte que me abria Traherne com as palavras "GOD never shewd Himself more a GOD, then when He appeared Man". Mais longe neste mistério da "dor de Deus" me levam agora estas palavras suas, que mo trazem à consciência, imersa na beleza radical destes acordes: "a dor de Deus feita música, uma dor que chama por nós na noite negra, uma dor que abre o mundo à terna alegria".
Quando pergunta "como é possível que um homem tenha feito aquilo? Como na pura imanência se inscreve a absoluta transcendência?", toca o mistério que as teorias da autotelicidade da obra parecem querer ignorar: o mistério de que, inquestionavelmente, um homem fez "isto" e em "isto" ele vive. (E que dizer da soprano?)
Ao dar voz às palavras deste poema, dou-a a quem nele fala e me fala - o Poeta, como Ele, tem este poder de se dar plenamente, a mim (e a cada um) como se fora única - ; mas dou-a ao mesmo tempo a mim mesma, numa enunciação que, na segunda pessoa, lhe/Lhe diz, com o alcance infinito da poesia, que "tudo está preparado".
"Midwinter spring is its own season": assim se inicia o quarto de Quatro Quartetos.
Não é esta "estação" a que é aguardada no poema? Virá e com ela as flores, quando a anunciarem os pássaros "e a névoa do inverno / deixar vir / a luz que nos resta."
Digo-Lhe: não foi da Tua vontade que fosse a Santiago... É então Little Gidding que me pões no horizonte? E dás-me um guia que não deixará que me perca senão em Ti.
sábado, 6 de junho de 2009
"um cântico novo"
A comunhão de referências funciona como uma outra linguagem que tomasse a linguagem comum como seu suporte, falando em e para além dela, singularmente a cada um. Mas esta outra linguagem não só não tira qualquer valor à primeira, a que é usada na expressão linguística, como, dependendo desta, a não dispensa.
Estou a colocar a escrita ao serviço do pensar e o que digo é, consequentemente, muito precário. Quando um poema me parece belíssimo (como é o caso destes poemas), essa beleza é na expressão linguística que imediatamente se manifesta, ao mesmo tempo que dela emana. Digo emana, não digo provém. Evoco o passo em que Traherne não sabe se a luz que vê a do próprio Sol ou se é a do Sol na alma ou se é ambas as coisas. Assim falaria desta beleza e do seu efeito em mim (mas o que é em mim? Como é redutora a ciência da linguagem quando a isto chama dimensão perlocutória...).
Sem esta reflexão o que pudesse dizer do poema (neste caso aquele de que me propus prender na escrita o efeito em mim) não passaria de um texto segundo, empobrecedor como todos os textos segundos, quando o poema apela a que diga (como ainda não sei) algo de semelhante ao que "um cântico novo" será para o salmista que o anseia encontrar.
Continuarei.
Se esta escrita é uma forma de oração contemplativa à maneira de Maria, a verdade é que não posso entregar-me à "melhor parte"(que escolho) durante todo o tempo que preciso e quero...
Estou a colocar a escrita ao serviço do pensar e o que digo é, consequentemente, muito precário. Quando um poema me parece belíssimo (como é o caso destes poemas), essa beleza é na expressão linguística que imediatamente se manifesta, ao mesmo tempo que dela emana. Digo emana, não digo provém. Evoco o passo em que Traherne não sabe se a luz que vê a do próprio Sol ou se é a do Sol na alma ou se é ambas as coisas. Assim falaria desta beleza e do seu efeito em mim (mas o que é em mim? Como é redutora a ciência da linguagem quando a isto chama dimensão perlocutória...).
Sem esta reflexão o que pudesse dizer do poema (neste caso aquele de que me propus prender na escrita o efeito em mim) não passaria de um texto segundo, empobrecedor como todos os textos segundos, quando o poema apela a que diga (como ainda não sei) algo de semelhante ao que "um cântico novo" será para o salmista que o anseia encontrar.
Continuarei.
Se esta escrita é uma forma de oração contemplativa à maneira de Maria, a verdade é que não posso entregar-me à "melhor parte"(que escolho) durante todo o tempo que preciso e quero...
quinta-feira, 4 de junho de 2009
"como uma atmosfera que respirasse"
Escrever centrando-me nos "poemas do viandante" é um desejo que nasce do encontro não de dois, mas de três infinitos e, entre eles, do poema (gloso assim o subtítulo do livro Béliers de Derrida). Coloquei no outro blogue um passo das Centúrias em que Traherne, envolvendo referências da teologia mística cristã, situa a sua escrita no seio desta mesma trindade Não posso, pois, dizer que o encontro tenha lugar no poema, a não ser que esse "lugar" seja simultaneamente "um não lugar" e o poema uma e outra coisa e o que ligando-as as diferencia.
Tudo isto que digo, pobre produto da reflexão, se desfaz reduzido ao que é (a imagem que tenho é a de uma criança a soprar um dente-de-leão), no momento em que me envolve, "como uma atmosfera que respirasse", o "meio" que é cada um destes poemas. E quem mais comigo? O que sei, se alguma coisa posso dizer que sei, é que não sou só eu (de qualquer maneira, o que é "eu" é aqui recolocado em questão).
Escolho um daqueles que mais me tocam e mais fazem tocar as cordas do meu coração (falo assim glosando um dístico de Silesius). Pergunto-me (ou pergunta-me Ele) se o não farão todos eles e reconheço que sim. Outras razões advêm, então, para que escolha, para começar, o poema 19, "A casa onde te penso".
Tudo isto que digo, pobre produto da reflexão, se desfaz reduzido ao que é (a imagem que tenho é a de uma criança a soprar um dente-de-leão), no momento em que me envolve, "como uma atmosfera que respirasse", o "meio" que é cada um destes poemas. E quem mais comigo? O que sei, se alguma coisa posso dizer que sei, é que não sou só eu (de qualquer maneira, o que é "eu" é aqui recolocado em questão).
Escolho um daqueles que mais me tocam e mais fazem tocar as cordas do meu coração (falo assim glosando um dístico de Silesius). Pergunto-me (ou pergunta-me Ele) se o não farão todos eles e reconheço que sim. Outras razões advêm, então, para que escolha, para começar, o poema 19, "A casa onde te penso".
terça-feira, 2 de junho de 2009
caminho de Emaús
A trindade, que diferenciando unifica, pressinto-a implicada também no encontro desses "anjos enviados fora de nós", com que Traherne relacionava identificativamente os "pensamentos." Quero partir desta premissa aparentemente ingénua (o que entender por "pensamentos"?), convicta de que se não trata agora mais de ler o poema à luz de teorias que a própria leitura suscita ou corrobora. Não digo que as abandone ou não reconheça quanto foi (e é) importante o seu papel, apenas as deixo à margem. Tudo é diferente agora.
Não generalizarei porque não se trata de teorizar, mas de compreender e, deste modo, avançar. Com a altura o ar é mais rarefeito, mas também mais puro. Estremeço na levíssima aragem que sopra e que respiro. Direi que vem do bater das asas destes anjos que me trazem notícia do invisível viandante que prossegue e de quem desejaria acompanhar o passo. Anjos que com os meus se envolvem sem se tocarem, como as chamas ascendentes do incenso.
Diria que foi preciso chegar a este ponto para o encontro aprazado. Como se o tivesse sido. E não foi? Cedo ao que de mais humano há em mim e falo de "Ele". Não tenho agora de esconder o quanto estou mais à vontade, sobretudo em termos de linguagem, numa espiritualidade personalista (voltada para o Filho), ainda que numa dinâmica de implicação mútua com o apofatismo (a "dimensão transcendente do Absoluto", o Pai) e com a pura vivência da "plenitude que se revela a si mesma" (a "dimensão imanente do Absoluto", o Espírito Santo) .