domingo, 25 de outubro de 2009

"quero despertar a aurora"

Se um tempo houve em que me levantava com as palavras do salmo no coração e nos lábios - "quero despertar a aurora" -, um tempo a que se seguiu um outro tempo em que da noite passava ao dia sem beneficiar dos primeiros raios da manhã, agora, de há dois dias para cá, tem acontecido ser a aurora a despertar-me.
Evoco, de D.H.Lawrence, um daqueles passos fulgurantes que o marcam (e que aos meus olhos ofuscam com o seu brilho outros, que o marcam também, onde, porém, faz o que condena nos outros, ou seja, prega uma moral). Transcrevo-o, entre muitos outros, que reiteram a adoração e o culto do Deus vivo:

"I am part of the sun as my eye is part of me. That I am part of the earth my feet know perfectly, and my blood is part of the sea" (Apocalypse).

Constitui, na verdade, uma outra verbalização de um passo de Traherne que já aqui trouxe, faltando-lhe, no entanto, o que Traherne lhe acrescenta:

You never Enjoy the World aright, till the Sea itself floweth in your Veins, till you are Clothed with the Heavens, and Crowned with the Stars: and Perceiv your self to be the Sole Heir of the Whole world: and more then so, becaus Men are in it who are evry one Sole Heirs, as well as you. Till you can Sing and Rejoyce and Delight in GOD, as Misers do in Gold, and Kings in Sceptres, you never Enjoy the World.
(Thomas Traherne, Centuries, I)

Falta? Talvez não falte, apenas há um ligeiro desvio na "orientação do coração" (como Rilke define "religião"):

"We ought to dance with rapture that we should be alive and in the flesh, and part of the living, incarnate cosmos".
(D.H.Lawrence, Apocalypse)

sábado, 24 de outubro de 2009

evocações suscitadas por Salve mi Jesu

Devo confessar que (tal como Civileso, que a escolheu em vez da versão original) prefiro esta versão "protestantizada" do texto de Rovetta da Salve Regina à versão católica tradicional, que sempre me causou alguma perturbação.
Sempre me perguntei por que haveria de pedir a Maria que me mostrasse Jesus, por que não haveria de Lho pedir a Ele directamente?

É a única oração de que me recordo nitidamente de aprender (teria cinco ou seis anos) com a minha mãe, repetindo passo a passo cada unidade de sentido, enquanto silenciosamente, pois que não dispunha de linguagem para o formular, resistia no mais fundo de mim à ideia do degredo, do vale de lágrimas e sobretudo de recorrer a Maria como intermediária para Jesus. Porquê esse desvio, se O sentia mais próximo e O amava com um amor que só Ele conhecia e que era o meu maior segredo?
"Quem Me vê a Mim, vê o Pai", disse Ele.
Como metáfora da relação mais me seduz a de "soror mea sponsa" do Cântico dos Cânticos do que aquela em que me coloco como filha, mesmo sendo a que Ele privilegiou como metáfora da Sua própria relação com o "Altíssimo".

Em relação a Maria, não a consegui nunca olhar como Mãe (devo dizer que as palavras mãe e pai não comportam para mim a carga afectiva que tenho observado terem noutras pessoas), mas como modelo e guia no seu incondicional "sim". Prefiro cantar-lhe "quero dizer sim, como tu, Maria" do que a Salvé Raínha, que no entanto, enuncio no final do terço (quando, em certas circunstâncias, o rezo).


Eis a letra deste Salve mi Jesu (a que surge sob a pauta tem uma gralha na adaptação da Salve Regina, sendo que Andreas Scholl dá claramente voz a "advocatus", não "advocata" como surge no texto):

Salve mi Jesu, pater misericordiae,
vita dulcedo et spes nostra, salve.
Ad te clamamus exules filiae Evae,
ad te suspiramus gementes et flentes
in hac lacrimarum valle.
Eia ergo advocatus noster
illos tuos misericordes oculos
ad nos converte et pacem tuam
nostris temporibus concede,
o clemens, o pie, o dulcis Jesu Christe,
pacem concede, o pax vera Jesu.

Salve mi Jesu



Salve mi Jesu
motet for alto, five strings and continuo

Text: Adaptation of the Marian text "Salve Regina"

Music: Giovanni Rovetta

Andreas Scholl, countertenor



digressão e divagação

Sempre que tenho começado a escrever um post, alguma coisa, com uma força impossivelmente ao mesmo tempo subtilíssima e poderosíssima, me tem levado num rumo diferente daquele que à partida pretendia seguir. Não posso dizer que tomei este ou aquele rumo, apenas posso dizer que o segui. No entanto nunca se tratou de modo algum de um caminho pré-traçado, mas sempre um caminho a traçar-se com o meu consentimento, se não com a minha vontade. Esta, no entanto, vai-se moldando ao "sim" que no mais íntimo e profundo de mim quero dizer à "voz deste chamamento". Compreendo bem a simbologia que me faz ver simultaneamente a estrada a abrir-se acompanhando o relevo da montanha e a superfície plana do mar a estender-se infinitamente desde a linha da praia onde quebram as ondas à linha do horizonte. Pergunto: se é para os "poemas do Viandante" que o coração me orienta o olhar, por que me perco em digressões teóricas e agora nestas divagações pessoais?
Disse alguma coisa (com respeito a essa vontade que se me dá a sentir actuante na minha) como poderia dizer alguém (já que lhe atribuo vontade própria).
Tal como a física que conhecemos, também a gramática, que controla e é controlada por um modo de pensar que se coaduna a essa mesma física, parece ameaçada de colapso na sua manifesta inadequação quando a referência se situa numa outra esfera de existência (concomitante ou paralela, porém com pontos de tangência com esta): os géneros deixam de fazer sentido (particularmente nas formas pronominais) assim como a distinção entre quem e o quê, entre passiva e activa, e até entre os tempos verbais, enquanto a noção de causalidade dá lugar à implicação mútua. Ficará, porém, sempre a noção de pessoa na relação trina que a faz surgir como primeira, segunda e terceira. Ia dizer que ficará como o amor em 1 Cor 13, mas seria redundante já que o amor envolve esta indissolúvel trindade de pessoas (eu, tu e o que nos liga) à Sua semelhança, Sua, de um três que como trindade se revela assomando neste plano de existência ou esfera do ser em que se não confina. (Não se esgotará nunca a reflexão analítica do "eu sou" do Pai ou do "sou eu" do Filho...)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

linguagem e pensamento verbal

Sendo realidades mutuamente implicadas, linguagem e pensamento verbal diferem no suporte físico. A gramática não é mais do que um modelo do pensamento verbal, modelado pela linguagem tanto quanto a modela também. No hábito que desenvolvemos de pensar em termos de transitividade (no que toca às nossas representações), dificilmente adoptamos uma outra perspectiva. Se a ergativa parece relativamente fácil (é, na verdade, mais simples), o rheomode de David Bohm requer um imenso esforço (nada bem sucedido no que me diz respeito, devo dizê-lo). Mas já a perspectiva ergativa, na sua simplicidade, abre um outro horizonte. Numa e noutra, trata-se de pensar a partir do acontecimento no seu acontecer, seja de ordem física, psíquica ou relacional (e respectivas interfaces).
Isto que chamo gramática (não falo, naturalmente, da gramática descritiva de uma língua) serve o pensamento, problematizando o próprio modo de pensar. Não constitui nem oferece uma luz para ver a luz, mas arreda a luz para ver o que se esconde por detrás dela. A gramática a que me refiro dá conta do pensamento no acto de se pensar.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

a relação

Insisto comigo mesma em não ver separados os mundos da vida e da escrita, de convicta que estou de que são um e o mesmo, ou não tocasse a escrita, na dinâmica que lhe é inerente, o mais profundo cerne da vida, nas suas diferentes dimensões, esferas de existência, níveis de vibração, ou o que se queira chamar à referência última dos deícticos "aqui", "aí", "ali", "além", a culminar nesse "onde" que é nenhum lugar. (Citando Silesius "(...] wo ist mein letztes End in welches ich sol gehen? / Da wo man keines findt. [...] trad. "onde o meu fim último para o qual devo ir? Lá onde nenhum se encontra.)
Numa e noutra, o mistério que lhes é intrínseco manifesta-se sempre irrompendo de uma relação (em que, em última análise intervem como parte activa, se não mesmo geradora ou criadora da própria relação).
À própria "gramática" é intrínseca esta dinâmica. Aceitando a categorização que Halliday faz dos "processos" (físicos, psíquicos e relacionais, com as respectivas interfaces), vejo os processos físicos e psíquicos como rios que corressem juntos no mesmo leito em diferentes caudais, de e para os relacionais. É com respeito aos "processos verbais" que Halliday mostra a maior insegurança, não avançando na direcção das perspectivas que abre. O situá-los na interface entre os relacionais e os psíquicos levanta a questão crucial da relação entre pensar e dizer, entre pensamento verbal e linguagem.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

o verdadeiro realismo

O verdadeiro realismo, o que nada tem a ver com escolas ou correntes literárias, porque é de sempre, é o traço em comum entre a criação humana e a criação de Deus. É, num caso e noutro, a vida como ela se manifesta ao olhar, sem outras condicionantes que não sejam as dos próprios olhos que a olham. Seja qual for o "suporte" material utilizado, trata-se de dar a ver o que se vê, que é onde começa e termina toda a mimesis.
A vida no mundo dito real não é, na sua essência, diferente da vida no mundo do texto/poema verdadeiramente realista. Em ambos os casos não há sentidos feitos e tudo se oferece na sua pura literalidade. É esta que me fascina nos poemas que me enlevam, me arrancam a mim mesma e me deixam algures, num novo patamar (um "quantum" de qualquer coisa sobrevém, comparável ao da energia que faz o salto quântico).
É a partir da literalidade pura que os sentidos irrompem sem que preexistam ao seu irromper. A verdadeira metáfora, a "metáfora viva", como o símbolo (não destruído na sua redução a mero "emblema"), não está feita: faz-se. Se porventura, na dinâmica gerada, concorrem sentidos feitos, metáforas mortas, ela não se lhes reduz. Transcende-os, abala-os e renova-os (como a suave brisa do Espírito). E, no fim, ela é todo o poema e já não falamos de metáfora, mas de poesia.
O mesmo se pode dizer da vida se a olharmos na literalidade pura em que a metáfora - e o mesmo é dizer o poético - irrompe e se manifesta no fazer-se sentido. O sentido, como o Espírito, não se agarra ou prende. Colar ou pregar um sentido num texto vivo é atentar contra a vida desse texto. Nesta perspectiva, vida, poeticidade e realismo tornam-se sinónimos.

É por isso que vejo o maior benefício em aplicar à vida (dita real) a teoria da literatura, na certeza de que, se nasce e se nutre da filosofia, também para ela concorre ( "from into the main", usando uma expressão de Traherne).

terça-feira, 13 de outubro de 2009

a fruição da palavra

Chamei glosa ao que mais não é que dar expressão linguística à inverbalizada fruição (na reflexão ou na contemplação suscitada) da palavra em que o poético se manifesta, assomando, irrompendo ou apenas fluindo como ténue curso (ou forte caudal) dessa água viva que surge no texto bíblico como metáfora para o Espírito divino por que o humano anseia. Da corsa/veado do salmo aos rios de água viva dos Evangelhos é o poético que, na palavra, diz a sede que de si mesma se sacia num dizer que mais ardente a torna.
O poético, tal como o Espírito, não está na palavra, mas na tríade de que nasce e que ele mesmo gera, princípio de toda a criação/fruição. Tal direi ser a relação entre o autor e o leitor (e o primeiro leitor será sempre o autor), que não se reduz à de escrevente-legente. O autor, no momento em que dele ou com ele se gera o sujeito da enunciação, é já algo mais do que aquele que escreve. É esse mais que no texto sagrado leva a que seja atribuído a Deus (a "Palavra de Deus"). E, naturalmente, esse "mais" advém, ainda e sempre, da relação que, sempre de novo, cria ou gera. Por isso as palavras do salmo "Saboreai e vede como o Senhor é bom" são extensivas a toda a palavra em que o poético, como o Espírito, assoma, irrompe, flui, sopra, respira.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Poema e glosa

Escreve D.B. na contracapa do que será o seu primeiro livro:

"A verdade é que não deixei de escrever, embora não redija nada numa folha de papel há muito... Creio que a escrita pré-existe, de facto, à fala e, mais ainda, ao próprio pensamento (...)".

Diria que assim é, mesmo quando a escrita não é mais, nem mais se pretende, do que um glosar, um dar forma ao sentir ou pensar envolvido na leitura e fruição do poema, deste ou daquele poema singular e único, deste ou daquele verso ou versículo. A glosa mais não é do que a tentativa sempre inglória de moldar o silêncio inerente à sua dimensão perlocutória como silêncio que se quer fazer oração (e esta pode assumir múltiplas formas).

D.B. continua: "São textos inteiros que surgem na minha mente, esperando ser lidos e fruídos, como o o som da música ou a luz do sol sobre os campos, que então se tornam verde-solar".

Uma glosa é a fruição cristalizada, em estado sólido (tal como "um livro é silêncio em estado sólido", segundo Quignard), do poema (ou de um seu verso ou versículo.) A escrita que lhe pré-existe, a escrita antes da escrita que a cristaliza, é a fruição fluida, líquida, etérea, ígnea do poema (penso em Traherne e na exaltação que faz da fruição do mundo), o verde solar dos campos, manifestação em cor do calor e do frio livres das leis da termodinâmica (o mesmo é dizer, livres das leis da física conhecida, neste espaço de limiar em que uma outra física se deixa pressentir na sua fascinante inconceptualidade).
Mesmo para a mera glosa, a sua escrita pré-existe à fala e ao próprio pensamento. Porém, o texto inteiro que surge na minha mente é a pura fruição daquele que leio e fruo. Quase diria que a criação e a sua própria fruição é à imagem da criação e fruição divinas, enquanto é humana (e feminina, o que é já uma outra questão) a fruição do que é criado. Assim se ligam o poema e as múltiplas formas de glosa que suscita ou envolve.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

limiar

Intensifica-se em mim a impressão de viver entre mundos, num espaço privilegiado de limiar em que se tocam diferentes dimensões da realidade .
Não sei se se trata de uma ordem ou de um consentimento o que se faz aguardar neste espaço, que é também o espaço da escrita. O desejo de escrever permanece vivo, mas a sua realização cada vez mais depende de uma como que força espiritual que faculta aquilo mesmo que consente ou reclama. Resta-me, pois, aguardar, sem ansiedade, mesmo que demore e veja os dias passarem, uns atrás dos outros, ocupando-me com tarefas que não só me tomam todo o tempo, como me deixam demasiado cansada (querer fazer uma coisa e ter de fazer outra comporta um acréscimo de cansaço) para, chegada a noite, conseguir alinhar duas frases...

sábado, 3 de outubro de 2009

Pál Esterházi, Harmonia Caelestis