Quando falo na "outra mão que na minha escreve" estou, naturalmente, a recorrer a uma metáfora, porventura não tão "perigosa" como se dissesse "a voz que escuto". Num modo de expressão dita "congruente", nem sinto nenhuma mão na minha, nem nenhuma voz me segreda o que quer que seja. E no entanto...
Com este "no entanto" dou o salto para fora da "zona de intersecção", digamos assim, que corresponderá, no meu mundo, ao espaço que nele ocupa essa abstracção com muita força que é o mundo dos "outros em geral" . Não será porventura mais real o que não é do domínio desse mundo ou que se situa no limiar, já que tudo o que para lá remeto não deixa de passar por mim? É neste sentido que entendo a resposta, na forma de uma pergunta, que Teresa de Ávila reporta: «Que se te dá a ti os outros?».
Os mundos atraem-se (o ditado inglês é mais expressivo na sua potencialidade poética: birds of a feather...). Diria, usando o termo da química do século XVIII com Goethe intitulou um romance (Wahlverwandtschaften), que se atraem em função de «afinidades electivas» entre eles. Ou, remontando aos conhecimentos de alquimia a que Traherne não era alheio, diria haver entre eles, tal como na atracção magnética, «comunicações invisíveis», «meios invisíveis de transmissão». Traherne toma-a na comparação com outra atracção que, no senti-la também a sua destinatária, um do outro os aproxima:
There are Invisible Ways of Conveyance by which some Great Thing doth touch our Souls, and by which we tend to it. Do you not feel yourself Drawn with the Expectation and Desire of som Great Thing?
É assim que leio Centuries como um convite ao estreitamento de afinidades decorrentes todas elas do que, no mundo de um e de outro, constitui a mais poderosa força que o move. Não é de surpreender que Traherne comece por solicitar a confirmação - ainda que tácita - disto mesmo que deseja e espera (de onde o carácter retórico da pergunta, a que, protagonizando a destinatária, me sinto aliciada a responder com o meu mais pleno "sim"). Um convite à aventura de, através da linguagem, descobrir mais e mais afinidades, porventura a criá-las, num processo em que o mundo se alarga como se na própria casa se fossem encontrando passagens para espaços desconhecidos (um sonho recorrente, este, naturalmente aberto a interpretações simbólicas).
Não poderei, porém, nunca falar desse mundo outro que, nesta atracção, toca o meu. Apenas posso dar conta do que me dá a ver, suscita ou cria no meu, a mais não tendo, não podendo ter acesso.
Com isto volto a esse mundo que só existe, só está aí/aqui,enquanto física, psíquica ou espiritualmente eu estiver também (o que é aí será ainda uma outra questão). Não só faço parte dele (como observador que pode inclusivamente observar-se a si mesmo), como dele faz parte também o Tu que, transcendendo-o infinitamente, também o envolve, permeia e me é mais íntimo do que eu a mim mesma, o "Tu" a quem não poderei dizer nunca «Du bist fort», ainda que o possa dizer do mundo do outro (como Celan) e até do meu ou de mim mesma, na coincidência absoluta da enunciação com o último instante. Ou não fossem (como veementemente espero que sejam) as Suas as palavras que não precisarei de articular para todo o meu ser as dizer por mim nesse instante supremo.