quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

a "fé" ou tocando o "horizonte do acontecimento": "certitude et joie"

Ao reler o "Memorial" de Pascal deparei com dois passos que poderiam dar conta não do "momento da verdade", "daquela hora em que o ser e o compreender coincidem", de que fala o Viandante, mas da subsequente tomada de consciência do que se pode entender como "evidência empírica" da ocorrência de um "acontecimento" que a memória não pode registar senão como ausência do que quer que seja: puro "acontecer", sem âmbito que o confine ao "ser". Transcrevo esses passos:

"Certitude. Certitude. Sentiment, Joie, Paix.
(...)
Joie, Joie, Joie, pleurs de joie.
(...)"

Ao falar no "Deus de Jesus Cristo" para o distinguir do "Deus dos filósofos", Pascal está ainda e sempre a pensar com razões da razão. Pelo contrário, nestes versos é ao puro sentir que dá expressão, um sentir que não é só o do coração (a cujas "razões" a razão chama "sentimento"), mas de todo o ser. O resto do poema é um esforço inglório de dizer (aos que têm olhos, mas não vêem, têm ouvidos, mas não ouvem, têm um "sentido" para esta ordem de realidade, mas não o reconhecem) que a "fé" não é nem crença nem matéria de crença, mas esta "certeza, certeza", esta "Alegria, Alegria, Alegria, choros de Alegria".

"Todos dizemos coisas que não compreendemos", escreve o Viandante. Diria que o poético no-lo suscita como via de aproximação não do que haja a compreender, que é tudo, mas do "momento de compreensão", de que apenas se conhece o "rasto" que é, unificada com a alegria, a certeza de que "Deus é verdade como o sol" (como tão singelamente o verbalizou Sebastião da Gama)

É Jo 15: 11 e Jo 17: 13 que me ocorreria citar.Porém, Pascal parece dar mais importância às palavras "Deum meum et Deum vestrum", em Jo 20:17, um versículo em que o poético tantas vezes foi confundido com o enigmático e tratado como tal: "Noli me tangere..." Como interpretar estas palavras? Porventura interpretar é compreender?

domingo, 24 de janeiro de 2010

"um Amigo que me ama"

Liguei ontem a televisão, coisa rara (tão rara como passar a roupa a ferro, que é quando a ligo), e apanhei no Canal História um documentário a meio, mas que me prendeu logo a atenção. O locutor (caso único em que não lamento a dobragem) falava naquele momento no "amor cortês". Citava um passo em que o trovador dizia algo como "serei teu amigo, teu amante, não teu marido". Esta frase, fora do contexto (e por isso mesmo trazida para o contexto actual) seria entendida como uma proposta, no mínimo, desonesta. Numa canção de amor cortês - "amour de loin", por excelência - diz algo de sublime. "Amigo" envolve um amor desapossado e "amante", puro particípio presente do verbo "amar", é parafraseável por via da oração relativa "que ama". E o eco de um cântico da catequese vem-me à mente (e com ele a voz da criança que tão miraculosamente Lhe aprouve que viesse ao mundo através de mim e que agora, em plena e difícil adolescência, ainda o canta, silenciosamente, é certo, mas porventura numa maior profundidade... por alguma razão recebeu o nome de Teresa, aliado a Maria): "Tenho um Amigo que me ama e o Seu nome é Jesus".
Os trovadores cultivavam o amor pelo amor, comentam alguns críticos. A inacessibilidade da "Amada", que torna a posse inalcançável, mantém viva a chama. Sem dúvida, mas sem a relação entre uma primeira a uma segunda pessoa não haveria nunca lugar a essa terceira, que verdadeiramente nasce da relação que cria, ou não fosse o Espírito esse mesmo Amor.
"To the friend of my best Friend", assim começa a dedicatória de Centuries, a traçar desde o primeiro momento esta relação trina, que se promete alcançar o que de inverbalizado e inverbalizável almejavam porventura já os trovadores.



quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

"libertando o sol"

É inerente ao símbolo a irredutibilidade à interpretação que o alegoriza (a alegoria é sempre de superfície, enquanto de profundidade é o símbolo em que se fundamenta). Se uma metáfora se lexicaliza ou cai no cliché e, assim, morre, o símbolo em que se sustenta não morre nunca. A partir dele é possível revitalizar a metáfora gasta, como o comprovam muitos epigramas de Angelus Silesius que glosam metáforas bíblicas. Acontece por vezes não se tratar da revitalização de uma metáfora exausta, mas da libertação do símbolo que ela encerra, que então brilha como o sol que se liberta do toro de lenha em que esteve aprisionado.
Os símbolos nos poemas do Viandante são desta natureza: libertos de usos anteriores, brilham com luz própria no caminho que adiante se abre e o que deixam vislumbrar faz que do caminho percorrido um sentido impressentido irrompa em consonância. Seja do ponto de vista de um ou do outro dos "dois infinitos" que neles se tocam, estes poemas são sinais e testemunhos da "aventura" (nos sentidos comum e etimológico do termo) que é a escrita na sua inseparabilidade da vida. Possa ela continuar sempre para todo "o tempo que resta".

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Lohengrin





In fernem Land, unnahbar euren Schritten,
liegt eine Burg, die Montsalvat genannt;
ein lichter Tempel stehet dort inmitten,
so kostbar, als auf Erden nichts bekannt;
drin ein Gefäß von wundertät'gem Segen
wird dort als höchstes Heiligtum bewacht:
Es ward, daß sein der Menschen reinste pflegen,
herab von einer Engelschar gebracht;
alljährlich naht vom Himmel eine Taube,
um neu zu stärken seine Wunderkraft:
Es heißt der Gral, und selig reinster Glaube
erteilt durch ihn sich seiner Ritterschaft.
Wer nun dem Gral zu dienen ist erkoren,
den rüstet er mit überird'scher Macht;
an dem ist jedes Bösen Trug verloren,
wenn ihn er sieht, weicht dem des Todes Nacht.
Selbst wer von ihm in ferne Land' entsendet,
zum Streiter für der Tugend Recht ernannt,
dem wird nicht seine heil'ge Kraft entwendet,
bleibt als sein Ritter dort er unerkannt.
So hehrer Art doch ist des Grales Segen,
enthüllt - muß er des Laien Auge fliehn;
des Ritters drum sollt Zweifel ihr nicht hegen,
erkennt ihr ihn - dann muß er von euch ziehn.
Nun hört, wie ich verbotner Frage lohne!
Vom Gral ward ich zu euch daher gesandt:
Mein Vater Parzival trägt seine Krone,
sein Ritter ich - bin Lohengrin genannt.


Text & musik / Text & music: Richard Wagner

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

"la música callada", ainda assim

Cordas muito profundas vibram em mim "tocadas" por cada novo poema do Viandante. À superfície, é como se os dois leitmotive que foi da Sua vontade que, separada e sucessivamente, escutasse, se tivessem impossivelmente conciliado num único, uno e trino, que agora me fosse dado ouvir e acolher. Como, sem a intervenção do próprio mistério, poderia isto acontecer? Que nome dar ao "tema do Viandante"? (Porque me ocorreu Lohengrin?)

É esse mistério que faz que no canto silencioso do "punhal feito da noite" reverbere , ainda assim, "la música callada" ("la soledad sonora") de S. João da Cruz e que "la noche sosegada" ("en par de los levantes de la aurora") toque a noite de que é feito o punhal. E a dor é "ave de sombra e sede " "que na Sua/sua boca se cala" (é evocando a reflexão "O limite de mim" que assim represento o mistério do "tu", divino e humano, neste poema belíssimo).
Certa de que me perdoará o Poeta esta "queda" na tentação da interpretação, com o link transcrevo para aqui o poema "Punhal", como se, para me redimir, o "tocasse" agora como um intérprete (tocaria) uma composição musical:

"um punhal
feito
da noite
canta
em silêncio

ave de sombra
e sede
que em tua
boca
se cala"

sábado, 16 de janeiro de 2010

Entre ondas e nuvens

Será que ficcionalizo a vida e por isso a vejo como o que a escrita reclama para que seja plena? De que é feita esta plenitude?

Se a vida pode ser adversa à escrita, também a escrita pode ser adversa à vida. Se uma pode ter sobre a outra um efeito nefasto, esterilizante, a verdade é que uma à outra mutuamente se reclamam para se cumprirem. A escrita não se limita a narrar ou glosar a vida, pois que é de mútua implicação e não de causa-efeito a relação entre elas. Não há que dar o primado a uma ou a outra, sendo que no princípio, coincidente com o fim e com qualquer meio, são uma coisa só que, se nasce da relação ao mesmo tempo a cria.
Já disse isto... ( "Shall I say it again?", evoco de Four Quartets).

Tal como a gramática ("pensar gramaticalmente" seria inútil se se confinasse à análise linguística de um enunciado verbal), as teorias da escrita (ou da literatura) são ao mesmo tempo teorias da vida, servindo essa mesma vida no sentido da sua inseparabilidade da escrita.

"Entre nuvens vogam aves /Entre ondas voam peixes"... "As ondas tornam-se altas nuvens / as nuvens tornam-se altas ondas"...

Transcrevo o poema de Lucebert (em holandês):

Onder wolken vogels varen
onder golven vliegen vissen
maar daartussen rust de visser

Golven worden hoge wolken
wolken worden hoge golven
maar intussen rust de visser.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

continuando, sempre...

Como o tinha começado a escrever no dia anterior, foi com a data de doze que ficou o post que aqui coloquei ontem, pretendendo continuá-lo hoje, num novo, como o estou a fazer.

Seria natural subir do "tocar" humano ao "divino" e não proceder na ordem inversa e descer do divino ao humano, se é que se pode ainda falar de subir ou descer, quando apenas se trata de prosseguir, em altura como em profundidade. No entanto, diria ter sido nesta ordem que tudo se transfigurou e um sentido, para além de todos os sentidos, começou a dar-se a pressentir, na sua inapreensibilidade.
Talvez a nota exacta que acorda este pressentir profundo e o traz à superfície seja mesmo esta: "tocar". E, se é à música que é dado quase "tocar" esse sentido último (inalcançável por não pertencer ao ser, mas ao acontecer, como diria R.M.), é no momento em que a música assume voz humana e, na sua suprema beleza, (digo-o sem heresia) toca as mesmas cordas que só pode tocar a Sua mão.
Nesta vivência algo em mim reitera o gesto em que, ao erguer para Ele as minhas mãos vazias, as vi (numa imagem de scrying, sem espelho negro ou bola de cristal) sustentar o mais belo e luminoso azul-indigo na forma de uma flor, única na radiante singeleza da perfeição. Certamente me autorizará o Viandante que substancie esse gesto no trazer para aqui o poema que acresce de uma outra maior beleza e vida a flor perfeita assim dada e oferecida um dia:

se te tocar
que cordas vibrarão
na penumbra
onde o fogo
se faz luar

O que disse não é um comentário, nem mesmo uma glosa, pois que uma coisa e outra são fruto de um reflectir "sobre" ou "a partir de". Não é à reflexão que este poema (como, aliás, qualquer dos outros) convida no seu puro dar-se. Antes convida ao gesto do mais puro receber ("dar" é , afinal, convidar a receber). Neste gesto me aproximo do mistério que me sinto "movida" a sondar. O mistério que se oculta e revela no puro acontecer dessa "penumbra / onde o fogo / se vaz luar".

Com um novo ânimo prossigo, temerosa ainda, na incerteza das sombras que, adiante, tão depressa se me afiguram nuvens como ondas; de um outro céu, porém; e de um outro mar.


terça-feira, 12 de janeiro de 2010

"The touch of God"

Comentando The Cloud of Unknowing, C. Wolters fala em "the touch of God" ("o toque de Deus"). Ainda que o termo esteja a ser usado metaforicamente, é, no entanto, o sentido mais "físico", mais "do corpo" que surge envolvido na mais "transempírica" ou "suprasensorial" das experiências. É o verbo "tocar" ("berühren") aquele de que Angelus Silesius se serve para dizer:

GOtt der ist ein Magnet / mein Hertz das ist der Stahl:
Eß kehrt sich stäts nach jhm / wenn ers berührt einmahl.
(C.W.,5:130)

Trad. "Deus é um íman / o meu coração é o aço:
incessantemente para Ele se volta / se Ele uma vez o tocar.

É natural que, como a Traherne, o mistério da atracção magnética o "tocasse" (estou a usar propositadamente o verbo "tocar" num sentido metafórico para fazer ressaltar o sentido literal do seu uso no dístico). Sabendo que o ferro (ou o aço), magnetizado, se torna ele próprio um íman, Silesius levara já (C.W.,3: 132) mais longe a força do símbolo:

Mein Hertze weil es stäts in GOtt gezogen steht /
Und jhn herwieder zeucht / ist Eisen und Magnet.

Trad. "Pois que é para Deus incessantemente atraído /
e de volta O atrai /o meu coração é ferro e é íman".

sábado, 9 de janeiro de 2010

"the open gate"


Há tempos fui à Net procurar imagens para "open gate" (um símbolo muito poderoso para mim) e encontrei esta imagem (gosto dela assim, em formato pequeno, como uma iluminura).
Até certa altura na vida eu mesma a mantive fechada, tão certa estava de que, se não encontrava do lado de dentro o que me faltava, muito menos o encontraria lá fora. Nem nunca sequer me abeirei dela. Do mesmo modo que na história do Barba Azul nunca me teria abeirado da porta fechada ou, no mito de Pandora, nunca teria aberto a caixa... e, claro, no jardim do Éden nunca teria colhido a maçã. Não por medo, mas por ter a certeza de que, não só perderia o que tinha, como o que desejava não o encontraria ali. Sempre soube que o que me falta não está em parte alguma, sendo como falta que o tenho já e me completa.
"Não se pode querer tudo na vida", diz muitas vezes a minha irmã. Fujo da discussão, mas, no mais fundo de mim, tudo é mesmo o que quero. Traherne joga com os sentidos do termo "want" na defesa desta posição, de tal modo que, estando no tudo contemplado o que falta, em Deus coincidem o ter e o faltar (colocarei este texto, que assim interpreto, no outro blogue).
Eis, porém, que, vivida esta experiência de totalidade, dou com o que esta imagem pode porventura dizer, com a legenda "the open gate" (não pode o verbo "abrir" ser mais ergativo do que aqui).
Reverberam as palavras do salmo "ergo os olhos para a montanha" e, de início, mais não vejo do que o seu recorte no horizonte, tão certa de " de onde me virá o auxílio". Só depois vejo a água, ao longe ainda, e nela deixo vogar o olhar durante um tempo, sem saber se são ondas ou nuvens o que vejo mais próximo de mim. Agora, porém, sei que são ondas e nuvens (como no poema que me suscitou todo um conto e que outra coisa agora me diz), luz e sombra, "lâmpada e véu" o que vejo diante de mim. "Oiço cantar" e ilumina-se-me o coração (queria, mais uma vez, fazer uso do ergativo aqui). E o canto, belíssimo, é o deste poema do Viandante, de que para aqui transponho o "traço", o rasto de sombra e luz:


"a sombra sob o clarão
talha a raia
sulco de pedra
lâmpada e véu
onde ilumino
o coração

se oiço cantar
sento-me
e deixo a inocência
vir sob a luz ou o véu
onde te oiço
ao chegar"

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

"pensar com"

Este espaço-tempo de tangência entre mundos que, se acontece com a escrita, também a faz acontecer, não é um outro mundo, distinto do chamado "mundo real", em que o "eu" se refugie como no "moinho abandonado" do poema de Gedeão. Por escrita entendo não apenas o que vou escrevendo, mas e sobretudo o que leio e que, indistinto do eu que o escreve, o faz aquele "em mim fora de mim" que Derrida envolve no "pensar com" . Tal será a essência do mais profundo pensar. Refiro-me, obviamente, ao pensamento verbal, maior do que a gramática (a léxico-gramática) que, se o molda, também por ele se deixa moldar (diria que a própria estrutura "pensar com", na sua (im)possibilidade, mostra esta sua natureza moldável).
"Pensar com" implica que "o outro" seja "em mim fora de mim" como o é no momento em que o escuto na voz que, silenciosamente, lhe dou. E sempre a mesma questão me vem assombrar: que mundo esta comporta senão o meu? Se é um caminho que não leva a lado nenhum pretender libertá-la de tal carga (do lado da leitura como do lado da escrita), também me interrogo se a algum lado me leva continuar a iludi-lo, focando os "significados interpessoais" (e textuais, é claro), no esforço inglório de, em face da sua impossível coincidência ou mesmo consentaneidade, colocar entre parêntesis os referentes ideacionais (se assim lhes posso chamar) envolvidos ou criados no processo.

domingo, 3 de janeiro de 2010

relação, linguagem, mundo

Nesta primeira segunda-feira do ano, procuro arrumar reflexões dispersas ao longo destes dias ocupados em afazeres que me imponho não considerar de segunda-ordem, se é vontade Sua que com eles me ocupe (sempre o conflito Marta-Maria). Como arrumar o pensamento (de que não separo o intelectual do afectivo/emotivo) senão por via da escrita? Um trabalho que envolve uma recapitulação em que sempre algo de novo me é revelado que não está tanto no que trago a este espaço de limiar entre mundos como do que deste mesmo advém. Como, se não por via de um "tu" que, de alguma forma, convoco, e que faz de mim este "eu" que escreve e escreve aqui?
Também nesta perspectiva se pode dizer que a escrita antecede a fala e toda uma linguagem encontra nela a sua origem. O tema é inesgotável quanto (ou por isso mesmo) aliciante. Como o da relação que lhe subjaz e para que concorre. Pensar a relação é pensar a linguagem e o mundo que uma e outra criam e que as cria. Volto sempre às dimensões semânticas, porém sempre algo mais se me afigura revelar-se. Algo sobre a relação (contemplando o eu e o tu envolvidos), a linguagem e o mundo, na sua implicação mútua. Como não hei-de continuar a encontrar aqui o maior fascínio?