quarta-feira, 31 de março de 2010

o poético emergente


No "mundo da palavra" há "fenómenos emergentes" , "que existem no seu próprio nível", e que emergem de um de um modo não menos misterioso do que "no mundo da física e da biologia" . O poético afigura-se-me um fenómeno desta natureza. Dizer que esse "nível" emerge no agora, simultaneamente de um " já " e de um "ainda não", não é atentar contra o mistério, mas, pelo contrário, realçá-lo.

Dizer que o "outro", por isto mesmo, "privilegiado", existindo ou assumindo existência "no seu próprio nível", é tão inerente ao poema, como as palavras que leio ou escuto só constitui uma heresia para a doutrina da autotelicidade do texto no momento em que pretender que seja de identificação a sua relação com o "autor empírico". Encaro, porém, as teorias da literatura na medida em que de algum modo esclarecem (e são esclarecidas por) a perspectiva, religiosa, no sentido etimológico do termo), que assumo da vida como via, caminho que se perfaz no encontro - e de encontro em encontro - com o "outro" e com, por e em "o Outro".



"a phenomenon that exists at its own level"

Continuo a ler (no tempo que, à noite, consagro à leitura) I am a strange loop. "Um fenómeno existe no seu próprio nível", escreve D.H., depois de admitir que um "fenómeno emergente" (epifenómeno) emerge de algum modo de um nível básico, porém de um modo que não é claro, sendo por vezes mesmo "misterioso". Aceita, pois, a sua existência nesse "nível", sendo assim que lidamos com "quase tudo" no nosso mundo físico e biológico. (Direi que descer à composição da matéria ou subir à composição do cosmos é ainda uma experiência que tem lugar neste "nível", partilhado pela ciência e pelo senso-comum).

Poderei continuar nesta ordem de raciocínio: emergirá deste nível o que de algum modo fizer a sua emergência (entrando em "existência") num nível acima, porém de um modo que não seria claro para quem observasse a sua "emergência" nesse "nível". Por outro lado, nada nos impede de pensar que um "fenómeno emergente" no nosso nível possa emergir, não de um nível "infra", mas de um nível "supra", de um modo não menos "misterioso".
Nada me é mais grato na ciência do que o reconhecimento e aceitação do "mistério". Será fundamentalmente por isso que D.H. me está a cativar tanto?

terça-feira, 30 de março de 2010

a águia

Os animais - ou "viventes" - evangélicos (que no A.T. surgem como as faces dos querubins, os anjos que se aproximam de Deus pela Sabedoria) representam perspectivas sobre o Caminho, e o mesmo é dizer sobre a Vida (acrescentaria sobre a Verdade, indissociada da Beleza e o Bem, não fosse a excessiva sobrecarga de sentidos e contextos que estas palavras arrastam). Sobre o Caminho e a Vida, que é Ele, e sobre o caminho que fazemos e a vida que vivemos seguindo-O.
Não cometerei, assim, nenhuma heresia ao fazê-los corresponder a cada perspectiva que me foi sendo aberta por Sua mão, sem que nenhuma substituísse a anterior, antes conjugando-se com ela. A da águia, porém, esteve sempre presente, no processo de lentamente se ir definindo até se manifestar nesse sonho que tão preciso e vivo permanece lá onde se guardam as experiências desta natureza. Se diálogo tivesse havido entre mim e a águia que me pousou no braço, no olhar em que literalmente os nossos olhos se tocaram, seria o que Bach nos dá a fruir no dueto que aqui coloquei no post do dia 24: "Mein Freund ist mein!" com a resposta "Und ich bin dein". O que colhi neste "loop" foi o que ambos ao mesmo tempo cantam: "Die Liebe soll nichts scheiden" (o amor nada deve separar). É assim que o leão não tirou lugar do touro, nem o homem alado o lugar de um e de outro, enquanto a águia, o pássaro que mais alto ascende no céu, todos envolve e transcende. Como não hei-de amar a águia com um amor acima de todo o amor? Com o amor que por Ele me foi dado sentir, um amor que é Ele mesmo amando em mim.

sábado, 27 de março de 2010

o touro, o leão, o homem alado, a águia

Águas passadas, mas que tanto peso tiveram no primeiro pedido que Lhe dirigi, num momento em que pela primeira vez tomei consciência daquilo que agora chamo "encontrar abertas as vias", como abertas as tive sempre ao longo da primeira infância sob a Sua protecção (e da dessa minha avó-mãe, presente sempre, mesmo na ausência). Fui aprendendo que, nessa "abertura", já terei sido atendida, ainda antes de o pedido se me formar nos lábios. De onde não precisar de o verbalizar e a verbalização que fizer não passar de um esforço tradutivo no momento em que recapitulo.

O que assim vem pela Sua mão não o perderei nunca de mim, ainda que de mim se perca. Foi Sua vontade que, quando a "história" parecia ter chegado ao fim, verdadeiramente então a "acção" começasse. Primeiro, por via d' Ele mesmo; depois, por via de cada um daqueles não tanto em quem, mas sobretudo com quem O deveria reencontrar, numa forma ainda insonhada: na tríade à Sua imagem.

Figuro-os em três encontros na viagem assim reiniciada. Figurá-los-ei como o leão na forma de lince; o homem do "ecce homo" de Nietzsche (não do Evangelho) em que, porque alado, vislumbrei a águia que me apareceu num sonho intensamente envolvente; e, finalmente (antes do Seu regresso final), o que mais sinto próximo desta águia que, no sonho, desceu a mim. Para completar o "tetramorfo" direi ter sido com o touro que, por Sua vontade, a viagem teve o seu primeiro início.

Nunca tinha pensado associar cada um dos quatro animais evangélicos a cada uma das mais importantes etapas da viagem, mas faz todo o sentido que por último surja S. João, aquele que sempre, pela sua poeticidade intrínseca, maior e mais profundo eco encontrou/encontra em mim.

uma semana intensa: Lisboa

Uma semana intensa, esta que passou. Se as idas a Lisboa já me eram penosas, que dizer agora em que eles, que habitaram aquele espaço, já lá não estão? Tão perto dali o lugar onde deles ficou "a capa que lhes despiram os anjos" (parafraseando o poema teosófico de Pessoa. Terra, que à terra retorna, naturalmente, o que não deixa de ser belo, olhado assim. Não fico insensível a um não sei quê que se respira nestes lugares (junto às campas, não nos tão horríveis jazigos) que tanto propicia a contemplação meditativa convidativa à recapitulação da própria vida.


Na casa que foi deles, como pesam as coisas que deixaram, no processo em que nelas se vai apagando (tornadas objectos no momento em que as desvalorizam atribuindo-lhes "valor") o que ainda resta das memórias, tão cedo aliás tornadas amargas, do tempo vivido ali, naquele espaço a que, de repente, me vi não mais pertencer. Predilecta da minha avó, este favorecimento terá ditado no meu pai e na minha mãe (quero explicá-lo assim) o movimento incontrolável da interioridade de centrarem o seu amor, respectivamente, num e no outro dos que a mim se seguiram, quase os perturbando terem ficado com tão pouco para mim.

Assim saí de onde não tive mais a que voltar. E ela, a minha avó lentamente partia também. Por que a não chorei?

quarta-feira, 24 de março de 2010

"Mein Freund ist mein"




6. Aria (Duet) Soprano (Soul), Bass (Jesus) (Cantata BWV 140 Wachet auf, ruft uns die Stimme)

Seele:
Mein Freund ist mein,
Jesus:
Und ich bin dein,
Beide:
Die Liebe soll nichts scheiden.
Seele:
Ich will mit dir in Himmels Rosen weiden,
Jesus:
du sollst mit mir in Himmels Rosen weiden,
Beide:
Da Freude die Fülle, da Wonne wird sein.



English Translation:

Soul:
My friend is mine.
Jesus:
And I am thine,
Both:
The/this love shall nothing separate.
Soul:
I want with Thee in Heaven's roses to pasture/delight.
Jesus:
Thou shalt with me in Heavens roses delight/pasture/graze.
Both:
There joy to the full, there delight and ecstasy shall be.

domingo, 21 de março de 2010

"Das Losungs Wort ist Lieb"

Uma casa, a minha casa, situe-a eu no mundo dito exterior ou aqui, feita de palavra e de silêncio, tem necessariamente diferentes divisões. No entanto estão todas ligadas e circulo por elas livremente. Deixo mesmos marcas de mim por toda a parte não obstante o esforço de ser organizada. Digamos que reservo uma dessas divisões - o "coração da casa" - para o que me é dado de bom e de belo e sempre que posso vou até lá simplesmente para fruir esse espaço e lá deixar uma flor, uma concha, um seixo, ou mesmo uma dessas pedras escuras que têm dentro o Sol. A "palavra-passe" é conhecida de toda a gente. Já Angelus Silesius a apontava (C.W.: 6, 204):

Das Losungs Wort ist Lieb: hastu's nicht eingenommen /
So darffstu nimmermehr ans Himmels Gräntzen kommen.

(Trad. A palavra-passe é Amor: se não a tens contigo / nunca poderás chegar à fronteira do Céu

Este "espaço" é para mim de fronteira com o Céu e o que faz o Céu é essa "Sua alegria" que Ele quis que nossa fosse também, ou essa "Vida" que Ele quis que tivéssemos "em abundância", ou essa "Paz" que só Ele nos pode dar, ou esse "Caminho" que é Ele mesmo, ou não fosse Ele mesmo a Verdade que se manifesta nesta "Alegria" , nesta Vida, nesta Paz, neste Caminho. E no bem. E na beleza.

Não se trata de conceitos abstractos, mas de tudo aquilo que, tocado pelas Suas mãos ou envolvido no Seu olhar, nos enche dessa Alegria, dessa Vida, dessa Verdade, desse Bem, dessa Beleza, dessa Paz. Pode acontecer com a flor lilás que me aparece nas mãos vazias para Ele abertas. Pode acontecer com o poema que, quase do mesmo modo, vejo diante de mim. E assim me vai sendo revelada a natureza desse "mais" que tão acima da flor coloca o poema. Se não fosse para conhecer esse "mais", para que viríamos aqui, lá tendo tudo?

sábado, 20 de março de 2010

"Cega de luz quando apareces"

Evoco, lá do fundo onde os guardei, os versos, agora dispersos, da mão feminina (Estela Guedes) que um dia os escreveu : "teço as noites com as manhãs... a casa é tosca... de árduo acesso / obscura se não passas nela / cega de luz quando apareces".
Ao reproduzir de cor estas palavras sinto-me tentada a glosá-las, dizendo por minha vez: Ainda que só indirectamente aconteça apareceres nesta minha casa "tosca", não deixa de se iluminar da luz de que venho cega quando te/Te encontro no pão e no vinho com que me esperas na casa onde te/Te procuro: a tua/Tua.
Será heresia o alargamento que me sinto movida a fazer do mistério eucarístico?

sexta-feira, 19 de março de 2010

"I am a strange loop"

Ainda não passei das primeiras páginas de I am a strange loop, mas já posso dizer que a componente interpessoal do registo produz em mim o movimento a que tenho chamado "recapitular" e que me parece muito próximo do que levou o autor, Douglas Hofstadter, a usar o termo "loop" para com ele identificar "isto" a que chamamos "eu". Um loop nunca nos deixa no mesmo sítio e inquestionavelmente é para diante que nos impulsiona num movimento para trás... - já sou eu a "recapitular", claro, e a antecipar-me.
Se é da vida que se trata, diz o autor, de que vida posso falar senão daquela que conheço melhor, portanto, da minha? Assim justifica - e aproveito o ensejo de o fazer também - não só o uso da primeira pessoa, mas também as "histórias" que conta no tom coloquial, familiar mesmo, com que exorciza a inibição do lugar-comum.

Ainda quinta-feira passada escrevi mais uma "história" decorrente de mais uma recapitulação do embate da pedra na superfície da água, da pedra e do seu afundar-se, bem como das ondas geradas. Não se trata de uma outra versão, mas de um ir mais fundo em busca do que a luz não deixa ver (o que logo a muda de lugar).
O que se narra é qualquer coisa irredutível a mero "facto", pois que contempla a "repercussão" do "acontecimento" no "isto" que incessantemente "narra", a si mesmo e/ou ao outro, num esforço de entender e/ou fazer-se entender, e sobretudo na relação que, se nasce desta dinâmica, do mesmo modo a cria.


Falo de "entendimento" como "apreensão" (que se deseja "global") da repercussão do acontecimento, repercussão para a qual (exorcizado o medo do lugar-comum), recuperei a velha metáfora das ondas concêntricas que se formam na superfície de um lago quando se lhe atira uma pedra. Reservo "compreensão" para o Seu olhar envolvente, consciente de que sem Ele a narração não passaria de um monólogo fechado em si mesmo no desespero do rato no labirinto onde a todo o momento encontra por diante uma parede. E é bem triste quando isto acontece.


sábado, 13 de março de 2010

oblivion e rapture

Vou mesmo aguardar, no desejo de que seja o Seu o meu desejo, a nova reconfiguração das contas luminosas resistindo à tentação da trama narrativa. Se o "acontecimento", por definição inenarrável sob pena de imediata redução a "facto", lhes é intrínseco, com ele (o acontecimento) lhes é também intrínseca a dinâmica em que sempre esta redução ocorre, nas formas que cria. Resistir-lhe parece-me, porém, não só inútil como contra-natura, um esforço criador da "totalidade" que nega, essa totalidade definida pela própria inexistência, indutora, porém, na afirmação do "não ser" como essência do ser, do desejo desta mesma "essencialidade". Se chamar a este desejo "wish", chamarei "desire" ao desejo do todo ("wholeness") em que a "essencialidade" é a relação. Momentos em que o "não ser" rompe o tecido do ser, "oblivion" e "rapture", "hole" e "whole" em que o eu se perde num regresso a que uns e outros chamam, negando-a ou afirmando-a, "Source". Sempre senti numa perspectiva ou noutra a intensa impressão de "falta".
Esta reflexão confirma-me o advertimento dos místicos ocidentais relativamente ao perigo de colocar "rapture" como objecto de "desire". Precisaria de uma outra palavra para o que, no início, chamei "o Seu desejo". Traherne utiliza "want", "His want", a um tempo desejo e falta, a falta que me dá a suprir no meu anseio? Nem "oblivion", nem "rapture", o anseio das "águas vivas" para a corça, ou do Amado para a "amada". Onde, então, se não n' Ele por Ele e com Ele subsistem conciliados desejo e realização?

quinta-feira, 11 de março de 2010

contas desfiadas

Continuo a seguir o "rasto" que deixa o Viandante neste "espaço" a que dei um dos nomes da alegria. Falo da que me move nesta peregrinação que me levou à "fonte da água" para durante tão pouco tempo, afinal, fruir os "prados verdejantes" por onde ela corre. Necessário era que continuasse a caminhar, fortalecida, sem dúvida, pela água e pelo pasto.
Nesta caminhada acontecimentos tem havido, determinantes, que a orientam na direcção em que ora sigo. E os pontinhos com que os represento (e que tenho ligado na história que com eles construo e desconstruo) são contas de luz que Lhe entrego erguendo para ele as minhas mãos vazias. Se, como numa imagem de scrying, as vejo cheias de pequeninas esferas luminosas, um dia, no mesmo gesto, foi uma flor que vi nas minhas mãos erguidas em oferta do vazio de que as tinha cheias. Era uma flor do campo, de um campo que depois e do mesmo modo vi surgir à minha volta, lilás da sua profusão. Uma imagem de alegria misturada, porém, já a tristeza de deixar a erva viçosa dos prados e o jardim a que descia em estando sossegada a minha casa. Depressa o lilás se tornava violeta e ao crepúsculo em breve se sucedia o negro da noite.
O desejo do amarelo e branco ilumina por clarões o pano de fundo deste céu. E, na contemplação da luz que me cega, deixo perder de mim o sentido da caminhada.
É, então, que desfio as contas e Lhas entrego desfiadas, na fé de que me dará a vislumbrar o raio verde da aurora e com ele o novíssimo padrão em que as reconfigure.

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segunda-feira, 8 de março de 2010

"À mon seul désir"


Eis o fragmento de La Dame à la Licorne, que guardei (na alma, decerto) desde o tempo em que tinha os Cadernos de Malte à cabeceira e me sonhava Abelone.

"Du, der ichs nicht sage..."

Desejo ou desire?

Posso perguntar: Porque ligo a estas palavras o poema 78 do Viandante, intitulado "Cavalo"? Desejo ou desire?
Não podia senão ser avessa às leituras feitas de símbolos e arquétipos e digam o que disserem sobre o poder e a força simbólica do cavalo mais não fazem do que um triste e ridículo esforço de lhe tentar pôr arreio. Como se ele o consentisse. Arranca-o e foge com ele, como diria D.H.Lawrence. "Cavalo de sangue". E de fogo. E no entanto branco e quase alado, água e ar. Porque é de La Dame à la Licorne a imagem em que me deixa o calar dessa voz?
Poderoso e suavíssimo o poema, que não resisto a trazer aqui:

"78 CAVALO

penumbra
silêncio
de fogo
na alegria
da sombra –
ou um cavalo
de sangue
nessa voz
que oiço

e calo"

desejo e desire

Já muitas vezes o disse e, no entanto, nunca terei dito tudo. Como pontos luminosos num fundo escuro, ligo-os e vejo aparecer um desenho e com ele uma história que continuamente desfaço e refaço consoante vou aperfeiçoando a "arte". Arte, se a definir como esse "já que se inventa" - um dos passos epigrafáveis, passe o neologismo, que coligi no meu pequeníssimo repertório de que me sirvo neste contínuo "re-inventar" do que vou escrevendo. Já tudo foi dito, dizem. E tudo há a redizer,di-lo-ão também. Redi-lo-ei, então, fruindo o que vier no que já veio,no puro prazer da in-venção.

Nesta história, passo agora muito tempo no "estaleiro" do mosteiro da Batalha,no fim do século XIV,início do XV, obrigada a deixar em espera a Leiria de 1830. Traduções que tenho em mãos, claro.
Não há como traduzir para tocar o "âmago das coisas" tocando o das palavras. Mais uma vez estou a glosar G.Steiner e a consciencializar este re- que é sempre pro- e que me revela a natureza inexaurível de umas e outras, no que se prendem com os acontecimentos com que e em que mutuamente se implicam.
Posso perguntar: porque me diz "desire" o que não escuto em "desejo"?

sábado, 6 de março de 2010

"The wings of desire"




Wings of Desire (The Rapture)

music: Richard Currier
words: Jim Piazza

Earth, Wind, Fire, The Wings of Desire
Enfold you. A whisper of Angels
Voices in seashells
Console you

Those who can hear them
Are those who don't fear them,
I feel them, lifting me,
The Wings of Desire

Glorious Rapture, Glorious Rapture,
Glorious Rapture, Forever After.
The Angels make way for the dawn of the day of love

Those who believe them
Are those who will see them.
I feel them, lifting me,
On Wings of Desire.

a realidade envolvente e permeante

Sabemos que tendemos a olhar a realidade, no mundo como na linguagem, como constituída por "coisas", seja à nossa medida, seja nos níveis macro e micro (de onde o uso do diminutivo latino em palavras como corpúsculo, partícula).
Sabemos, também, que se trata apenas de um modo de "ver", num sentido alargado de percepção através da mente e dos sentidos (e dos instrumentos construídos para lhes aumentarem o alcance e o "rigor").
Sabemos ainda, agora através de um "sentir" para além dos sentidos e da mente, que a realidade nos envolve juntamente com esse nosso pequenino esforço de apreensão daquilo que, nesse esforço, logo reduzimos a "objectos" e a "factos", não sendo ela mesma redutível ao conjunto de uns e outros, não sendo da natureza de nenhum deles. Passámos a falar de "coisas" e de "acontecimentos". Não abandonámos, porém, a primitiva tendência a olhá-los como "partículas". Não "particulazinhas da criação", mas meras particulazinhas, pequeninos todos em si mesmos, "fragmentos de uma totalidade inexistente".

Ao enunciarmo-nos "particulazinhas" (ou, para alguns, uma multiplicidade delas) deixámos de as qualificar como "da criação" (estou, naturalmente, a evocar Santo Agostinho). Pouco a pouco, porém, a [a criação] temos vindo a recuperar com outros nomes, olhando-a como o todo e o tudo em que acontecimentos (e, neles, as coisas) se tornam "sentido", não o tendo em si mesmos pelo simples facto de serem inseparáveis desse todo e desse tudo que os envolve e permeia.
Desse todo e tudo apenas nos é possível reconhecer o que sempre sentimos no sangue (passe a metáfora), ou seja, a conexão: a relação que nasce, acontece, sustenta-se, transforma-se a partir daquilo mesmo que a cada momento cria, sempre renovada e renovadora.
É nesta renovada visão das coisas e dos acontecimentos que volta a fazer sentido falar de via, não pré-traçada, mas traçando-se e retraçando-se na dinâmica de um "re-" que é ao mesmo tempo "pro-". E de novo, porventura mais do que nunca, a atitude é de espanto.
E de espanto em espanto prosseguimos a partir do momento (na estrada de Damasco?) em que pela primeira vez vimos a "via". E, atravessando desertos e noites, continuamos a vê-la no contínuo traçar-se e retraçar-se, numa sempre nova e maior luz.

Como é que o poema 78 do Viandante me levou a escrever todo este preâmbulo? Diria, nesta actividade de pensar a que a escrita obriga (e que reclama esta mesma escrita), que terá sido a fulgurante certeza de não estar diante de "fragmento" de totalidade alguma, existente ou não existente, mas de me sentir envolvida num todo e num tudo em que a conexão se manifesta em imagens sensíveis, poderosíssimas no tocarem esses "centros emotivos mais profundos" de que fala D.H.Lawrence (e de que Traherne teve uma não menos viva "apprehension" - colocarei no blogue que fiz seu este brevíssimo poema ).

Deixarei para um outro post o adiado fascínio de escrever neste envolvimento que me "dita" a escrita que de si mesma se faz "via" e que, como nunca antes, fulgura como esse "caminho de Emaús" de que formulei já aqui o desejo de encontrar e perfazer. Até que Ele fraccione o pão de que nos alimenta já (ou nos enganasse o coração).