Sabemos que tendemos a olhar a realidade, no mundo como na linguagem, como constituída por "coisas", seja à nossa medida, seja nos níveis macro e micro (de onde o uso do diminutivo latino em palavras como corpúsculo, partícula).
Sabemos, também, que se trata apenas de um modo de "ver", num sentido alargado de percepção através da mente e dos sentidos (e dos instrumentos construídos para lhes aumentarem o alcance e o "rigor").
Sabemos ainda, agora através de um "sentir" para além dos sentidos e da mente, que a realidade nos envolve juntamente com esse nosso pequenino esforço de apreensão daquilo que, nesse esforço, logo reduzimos a "objectos" e a "factos", não sendo ela mesma redutível ao conjunto de uns e outros, não sendo da natureza de nenhum deles. Passámos a falar de "coisas" e de "acontecimentos". Não abandonámos, porém, a primitiva tendência a olhá-los como "partículas". Não "particulazinhas da criação", mas meras particulazinhas, pequeninos todos em si mesmos, "fragmentos de uma totalidade inexistente".
Ao enunciarmo-nos "particulazinhas" (ou, para alguns, uma multiplicidade delas) deixámos de as qualificar como "da criação" (estou, naturalmente, a evocar Santo Agostinho). Pouco a pouco, porém, a [a criação] temos vindo a recuperar com outros nomes, olhando-a como o todo e o tudo em que acontecimentos (e, neles, as coisas) se tornam "sentido", não o tendo em si mesmos pelo simples facto de serem inseparáveis desse todo e desse tudo que os envolve e permeia.
Desse todo e tudo apenas nos é possível reconhecer o que sempre sentimos no sangue (passe a metáfora), ou seja, a conexão: a relação que nasce, acontece, sustenta-se, transforma-se a partir daquilo mesmo que a cada momento cria, sempre renovada e renovadora.
É nesta renovada visão das coisas e dos acontecimentos que volta a fazer sentido falar de via, não pré-traçada, mas traçando-se e retraçando-se na dinâmica de um "re-" que é ao mesmo tempo "pro-". E de novo, porventura mais do que nunca, a atitude é de espanto.
E de espanto em espanto prosseguimos a partir do momento (na estrada de Damasco?) em que pela primeira vez vimos a "via". E, atravessando desertos e noites, continuamos a vê-la no contínuo traçar-se e retraçar-se, numa sempre nova e maior luz.
Como é que o poema 78 do Viandante me levou a escrever todo este preâmbulo? Diria, nesta actividade de pensar a que a escrita obriga (e que reclama esta mesma escrita), que terá sido a fulgurante certeza de não estar diante de "fragmento" de totalidade alguma, existente ou não existente, mas de me sentir envolvida num todo e num tudo em que a conexão se manifesta em imagens sensíveis, poderosíssimas no tocarem esses "centros emotivos mais profundos" de que fala D.H.Lawrence (e de que Traherne teve uma não menos viva "apprehension" - colocarei no blogue que fiz seu este brevíssimo poema ).
Deixarei para um outro post o adiado fascínio de escrever neste envolvimento que me "dita" a escrita que de si mesma se faz "via" e que, como nunca antes, fulgura como esse "caminho de Emaús" de que formulei já aqui o desejo de encontrar e perfazer. Até que Ele fraccione o pão de que nos alimenta já (ou nos enganasse o coração).