domingo, 31 de julho de 2011

continuando o post anterior

Posso desejar ou não, posso acolher ou não o «corpo» que assim se me oferece, nessa «suspensão do contacto real» (continuo a citar HV) em que a literatura acontece («só nela existe», diz). Nada poderia soar mais profundamente verdadeiro aos meus ouvidos de que este reconhecimento, aliado ao desse outro espaço que se abre: «o espaço para um novo desejo, um espaço para uma outra emergência de eros». Prossigo a citação: «O deus manifesta-se agora em novas formas de desejar, de um desejo que se consuma na comunhão dos espíritos».  
Em última análise, o «deus» visará o acontecer de uma «ecclesia», na comunhão dos «espíritos que encontram na obra os motivos, mesmo os símbolos, para o seu reconhecimento». De novo se me suscita a analogia com a comunhão eucarística... para tomar consciência de que nunca o meu desejo se alargou ao que fosse que não Ele... 
E nunca poderei esgotar na interpretação a singularidade da experiência que se tornou pra mim um símbolo para a vida toda. Trá-lo-ei um dia aqui. «Approach to the meaning restores the experience...» Até que ponto?

a obra, «suporte (...) de um espírito»


(de F.M. para O Canto da Água)
A luz é que faz o objecto, diz T.T. , sem deixar de ver envolvidos os dois  outros intervenientes, a "materialidade" do objecto (o «suporte», seja qual for a sua natureza) e o olhar do observador. O mesmo será dizer os planos físico, psíquico e espiritual, coexistindo e interpenetrando-se. É de esperar que, com respeito a esta dinâmica "(re)criadora" do que chamamos "realidade", nada basicamente se altere, quando, não falando do olhar e da luz, o "suporte" advier ele mesmo de uma dinâmica da natureza daquela em que, como tal, intervém (e que porventura suscita), tendo sido outros os intervenientes: outra a luz, outro o olhar, outro o suporte.


(da net)
Trouxe aqui estas imagens que me parecem poder ilustrar esta questão, que é, afinal, a que elas mesmas levantam. Um outro olhar, indissociável da luz a que olha, está, num e noutro quadro,  envolvido, «entrelaçado na materialidade» do objecto que criou, confrontando-me (também eu, um olhar indissociável da luz a que olho). 
Quando a «materialidade do objecto» é de natureza verbal, o que há a esperar é que a complexidade envolvida seja muito maior.

Almejando ver unificados, no "plano da viagem", os planos da vida e da escrita / leitura, não pode encontrar maior acolhimento em mim a visão de H.V. (de quem são as citações que faço atrás) a partir, como diz, da recolocação do conceito ricoeuriano de obra ('suporte de um mundo') numa outra perspectiva, nomeadamente a que lhe a dá a ver como «suporte não de um mundo mas de um espírito». Continuo a citar: «entrelaçado à materialidade verbal e técnica da literatura está um dado espírito que se dirige ao espírito do leitor e o confronta».  Luz e olhar são um, no «espírito» que assim se comunica feito palavra. Será heresia atribuir-lhe, antes de mais, e com respeito à «obra», uma reiteração das palavras eucarísticas? Hoc est enim corpus meum. De que natureza é o corpo assim exposto?

Como este post já se alonga, continuarei num outro.
 

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Voltando ao criador e à criatura

Assiste-nos alguma parte na criação da história que protagonizamos - na verdade, por ser de natureza tão outra o seu suporte, este é em muitos aspectos comparável a um texto. É certo que  o texto-vida e o texto-obra se podem "ler" como se de duas realidades paralelas se tratasse; paralelas, porém, num espaço que a todo o momento se encurva e, então, pontos há que se encontram e mutuamente se iluminam. Seja simbólica, seja lógica, a linguagem envolve-nos sempre na criação/construção do sentido, de onde a proeminência que tem sido dada ao acto de leitura sobre o acto criativo de escrita que, mesmo para o próprio criador, parece reclamar obediência à sentença final do Trataktus. 
Dado que no texto-vida o criador se oculta na criatura (como acontece no mais conseguido romance em que toda a "voz autoral" é silenciada), a questão do autor só se coloca com respeito ao texto-obra, seja o seu suporte a palavra, a imagem, ou o puro som (ou tudo isto junto). Parece-me, porém, observar-se alguma incoerência na sua colocação.
Se, ao ler uma reflexão, um comentário, uma crónica, um ensaio filosófico, identifico o sujeito da enunciação com o autor, porque o não hei-de fazer ao ler um poema que esse autor tenha também escrito? Ou porque, havendo uma distinção de "suporte" (o autor no da vida, o sujeito da enunciação no da obra), não hei-de ser coerente e observar sempre uma distinção entre uma categoria e outra, inclusivamente no texto mais funcional, como, por exemplo, uma lista de compras ou uma receita de culinária? Há tempos encontrei uma, escrita pela minha avó. Ao lê-la não a terei de algum modo chamado ao texto-vida? Sempre que se evocava alguém que tivesse morrido, recordo vivamente que ela acrescentava sempre «que Deus haja».

domingo, 24 de julho de 2011

a Sabedoria, o Reino, o Espírito Santo

O Evangelho de hoje dá-nos as «metáforas do Reino»: "é como" um tesouro, uma pérola, uma rede de pesca. Na "primeira leitura" (do A.T.) Salomão não pede riquezas, nem poder, nem uma longa vida, antes pede a Sabedoria. 
É imediata a associação do Reino e da Sabedoria ao Espírito Santo: o que nunca nos será negado se com fé o pedirmos, o que ora em nós, que não sabemos o que pedir nas nossas orações, o que a nossa alma anseia como a corça do salmo anseia as águas vivas, o Paráclito: <paráklētos - aquele que consola ou conforta; aquele que encoraja e reanima; aquele que faz reviver (passiva na forma, a palavra etimologicamente significa "chamado para o lado de alguém").

Fui procurar uma versão do conhecido hino ao Espírito Santo, e optei por esta, em canto gregoriano:




Veni, Sancte Spiritus,
et emitte caelitus
lucis tuae radium.

Veni, pater pauperum,
veni, dator munerum
veni, lumen cordium.

Consolator optime,
dulcis hospes animae,
dulce refrigerium.

In labore requies,
in aestu temperies
in fletu solatium.

O lux beatissima,
reple cordis intima
tuorum fidelium.

Sine tuo numine,
nihil est in homine,
nihil est innoxium.

Lava quod est sordidum,
riga quod est aridum,
sana quod est saucium.

Flecte quod est rigidum,
fove quod est frigidum,
rege quod est devium.

Da tuis fidelibus,
in te confidentibus,
sacrum septenarium.

Da virtutis meritum,
da salutis exitum,
da perenne gaudium, Amen, Alleluia.

sábado, 23 de julho de 2011

«noli me tangere» (2)

Só depois de publicar o último post é que li o Evangelho do dia. Precisamente o passo a que pertencem as palavras que tomei como título. Estas "sincronicidades" são tão frequentes que, pondo de lado outras explicações (como a de Larry Dossey, por exemplo, de quem ando intermitentemente a ler The power of premonitions), posso - e quero - ver nelas um sinal da íntima conexão entre as coisas, muito em especial quando se trata da «via», cada vez mais fulcral para «o tempo que (me) resta». 
A "via" é, naturalmente, um símbolo, mas tão poderoso que em si reúne e conecta as experiências de leitura e de vida que se me oferecem (ou me são oferecidas?) nesta «esfera de existência»; um símbolo que me apraz visualizar como um caminho que terei de fazer sozinha, não porque não tenha encontrado outros caminhantes, mas porque nunca o passo é o mesmo para que se tenha tornado possível um caminhar a par. É assim que me encontro agora na esteira de quem avisto adiante sem pretender que se detenha, sem lho pedir, sabendo que o não devo sequer querer. Significativo a este respeito me parece ser o modo como o latim constrói a negativa do imperativo: noli, à letra, "não queiras"... Não, não o vou querer deter, prender ou mesmo tocar (qual âmbito de significação do termo grego traduzido por tangere?) 
Caminhando à minha frente, aponta-me Aquele que, desde sempre, vem seguindo; seguindo-o, segui-Lo-ei também, ainda que deixe de ver a estrada e, com ela, o horizonte e tudo o mais em volta. Um Nichts de que emergirá ichts, como o verbalizou A.S. Uma só coisa, diz o "anónimo" que escreveu A Nuvem do não-Saber, pode atravessar esta  interposta nuvem. E esta coisa tem um nome, um nome tão puro quanto o coração e os lábios que o pronunciarem. Que o Seu fogo toque os meus para que o possa pronunciar um dia como, sem o ouvir, nos Seus um dia o ouvi. Meço a distância que me faz olhar para trás, na certeza, porém, de que só adiante, como o anseia a minha alma, o poderei voltar a ouvir. Não é um eco que ouço já? O eco que encontra no coração e sobe aos lábios de quem, ouvindo-o, o pronuncia, caminhando adiante. Como não seguir «a voz deste chamamento»?

sexta-feira, 22 de julho de 2011

«noli me tangere»

Será por tudo isto (e não só) que um livro é para mim um encontro com aquele que o escreveu e, na proporção em que se me revela "especial", um contacto impossível com a transcendência do "outro" cujo mistério tanto me fascina. 
Com respeito ao que para ele me atrai como se "química" houvesse, só posso dizer que a mais completa biografia que dele fosse (re)constituída não me daria uma centelha do conhecimento que, sem o alcançar, alcanço assim (perdoe-se-me o oxímoro, um tanto anacrónico). Posso, por isso, inteiramente prescindir do conhecimento dos dados pessoais do autor, e mesmo admitir que tais dados, sempre de superfície, poderiam obstar à relação naquele nível mais elevado de vibração (se é que posso falar assim) que a obra me propicia. 
Nesta perspectiva, a biografia do autor (excepção feita à autobiografia, ficcionalizada ou não, que leio como mais um texto seu) parece-me comparável ao que, na vida real, me fosse dito do "outro" ou que viesse indirectamente a saber dele, antes ou depois de havido esse "contacto" (no sentido etimológico do termo), esse «corpo a corpo» com a obra que leio e que, por aquela misteriosa "química" de que falo atrás, se me manifesta especial. 
A linguagem da química não é traduzível em linguagem verbal (quando muito a expressaria «em línguas»). Não é uma biografia, ainda que fosse de uma outra natureza, que me propusesse reconstituir a partir de «vestígios» ou «sintomas». O desejo é o de estender a mão como Maria de Magdala para o tocar, para o deter, para lhe dizer "fica um pouco mais". Insondável o mistério a que as tão escrutinadas palavras latinas oferecem um frágil suporte e que poderia convocar aqui. De onde o título deste post.

"na...und?"

À quoi bon?  (num registo menos próprio, poderia perguntar em alemão: na...und?) Sim, a que  leva esta deambulação por questões que só os teóricos se colocam, unidos no que os opõe: a ligação entre a vida e a escrita, em última análise, entre o mundo dito real e o mundo do texto. Em que é que isto importa para a vida real? -  já me vi muitas vezes confrontada com esta pergunta.
Nada nos é mais "dado" do que a vida, esta vida que dizemos ser a nossa e que se afigura a cada um de uma maneira diferente, de maneira sua. Muito cedo aprendi - e foi com a a minha avó - a olhá-la como dádiva mas também, na sua transitoriedade, como uma passagem por este mundo, passagem que, por um mistério insondável de Deus,  para uns era mais longa e para outros mais curta - assim me explicava ela que o menino da fotografia, que nunca consegui olhar como meu tio, tivesse cá passado doze anos apenas. Se, de início, só a conseguia ver como caminho no espaço, passei a vê-la como caminho no tempo, e, só muito mais tarde, como viagem em dimensões concomitantes da mesma realidade.
Foi com o aprofundamento que a "teoria da literatura" me proporcionou que passei, a certa altura, a olhar a vida-viagem no mundo dito real como a olharia se a estivesse a viver no mundo dito do texto  e a analisá-la como se o fosse. Foi então que tudo se tornou demasiado complexo e me vi neste emaranhado de teias que eu mesma teço e de que não consigo sair, mas em que porfio, certa de que, tudo estando conectado, não é solução ficar pelas separações que a análise estabelece para os seus próprios fins.

terça-feira, 19 de julho de 2011

convite, chamamento, sedução

Porque sinto, por vezes, tão vivamente, para além do narrador pessoal ou impessoal da narrativa, para além do sujeito da enunciação do poema ou do texto confessional que leio, uma instância outra, uma entidade imanente ao texto, mas que, ao mesmo tempo, o transcende enquanto «outro», no seu mistério?  Sinto-o independentemente de conhecer ou não a biografia do autor (podendo mesmo ser anónimo, como no caso da Nuvem do não-saber), separada que esteja dele por séculos ou apenas instantes, seja ou não a minha a língua em que se expressa.
Partilho a experiência que me sinto, assim, convidada, chamada, ou mesmo seduzida a partilhar, tanto mais plenamente quanto for capaz de a protagonizar nessa dimensão a que me transporta o texto que, em virtude disso mesmo, se me revela especial. O mesmo será dizer que um tal texto é, para mim, por excelência, poético.
 

a abertura à protagonização

Vergílio Ferreira, num texto a que penso já aqui ter aludido, é o termo «fulgor» ( ou um seu derivado) que usa para a realidade - ou tomada de consciência dela - que lhe suscita a escrita:  «...e descobrimos alucinados esta realidade fulgurante que é a pessoa que somos (...)»
«Alucinados» é o termo que escolhe para um sentir que generaliza a um «nós» em que se inclui. Muito longe me deixa, levando-me talvez mesmo na direcção oposta,  daquele  espanto - Wonder / Wunder - que a mesma tomada de consciência, ou seja, o eu tomando consciência de si mesmo, suscita a T.T. e a A.S., que assim o explicitam:

O wondrous self! O sphere of light!
O sphere of joy most fair!  [...]
Thou which within me art, yet me! Thou eye
And temple of His whole infinity!

Jch bin so breit als GOtt /  nichts ist in aller Welt /
Das mich (o Wunder ding!) in sich umbschloßen hält.

Poderia pensar que todos estes textos põem em foco o mistério do que os ingleses chamam "self", inerente a todo o ser («It intended to be itself. But what self?», pergunta Ursula, a personagem de D.H.Lawrence, relativamente ao ser unicelular que vê ao microscópio), independentemente, portanto, do grau de consciência de si,  o núcleo onde tudo converge e de onde tudo emana, o ponto-centro e a  ilimitada esfera de que T.T. e A.S. se dão conta, maravilhados. 
Se, como Vergílio Ferreira, fazem uso da primeira pessoa a si reportando a experiência vivida, que diferença faz lê-la na terceira pessoa, reportada por um narrador impessoal como tendo lugar numa e para uma personagem? Quando personagem e narrador coincidem, é porventura o texto menos "realista", menos "poético" ? A cena continuaria a apresentar-se ou desenrolar-se diante de nós, seja na interioridade, seja na exterioridade da personagem, continuaria a abrir-se à nossa protagonização. É aqui que entramos, que somos mesmo convidados a entrar como enunciatários pessoais ou impessoais, directos ou oblíquos.

o «toque» da «compreensão»

Prossigo a citação que coloquei no post anterior:

«Suddenly in her mind the world gleamed strangely, with an intense light, like the nucleus of the creature under the microscope. Suddenly she had passed away into an intensely-gleaming light of knowledge. She could not understand what it all was. She only knew that it was not limited mechanical energy, nor mere purpose of self-preservation and self-assertion. It was a consummation, a being infinite. Self was a oneness with the infinite. To be oneself was a supreme, gleaming triumph of infinity.»

Realizado este momento em que a interioridade da personagem e a exterioridade representada pelo ser microscópico se relacionam sem quaisquer nexos de causalidade, vemo-la  explicitar significações (interpretações do símbolo que não logram destruí-lo na alegoria).  Na verdade, os seus enunciados, apenas nos dão conta da sua incapacidade de chegar ao entendimento daquela experiência (a do «toque da compreensão»?)  a que reconhece toda a  intensidade, profundidade e amplitude significativa: «It was a consummation, a being infinite. Self was a oneness with the infinite. To be oneself was a supreme, gleaming triumph of infinity». 

Lawrence não dá ocasião a que possamos confundir narrador e autor, personagem e autor. A formulação é indiscutivelmente da personagem, que a ela chega através desta vivência, connosco plenamente partilhada, de um momento de “fulguração”. Temática e simbolicamente significativa é, no passo que tenho vindo a transpor para aqui, a palavra "gleam".  Na tradução que tentei fazer, foi a palavra "fulgor"  (e seus derivados) a que escolhi. 

a dimensão simbólica

Remontando um pouco atrás (na citação que faço de D.H. Lawrence no post anterior) é esta a cena que se desenrola ante o olhar do leitor, mas inquestionavelmente também do autor, enquanto aquele que lhe dá existência no texto e por via dele, mas não só, e não apenas no momento em que passa a leitor da própria escrita, mas no acto em que escrevendo a concebe, ou ela lhe «acontece»:


[...]She looked still at the unicellular shadow that lay within the field of light, under her microscope. It was alive. She saw it move - she saw the bright mist of its ciliary activity, she saw the gleam of its nucleus, as it slid across the plane of light. What then was its will? If it was a conjunction of forces, physical and chemical, what held these forces unified, and for what purpose were they unified?
For what purpose were the incalculable physical and chemical activities nodalised in this shadowy, moving speck under her microscope? What was the will which nodalised them and created the one thing she saw? What was its intention? To be itself? Was its purpose just mechanical and limited to itself?
It intended to be itself. But what self?

As interpretações pertencem agora exclusivamente ao leitor e, nessa medida, em nada podem afectar o texto. Talvez mais importante do que interpretar fosse reconhecer de que forma o texto corta com as relações de causalidade de uma lógica discursiva para penetrar naquela dimensão da realidade a partir da qual protagonizamos significações simbólicas e sem a qual seríamos pouco mais do que aquele conjunto de forças electroquímicas lutando pela própria sobrevivência sobre cuja razão de ser se interroga a personagem de Lawrence. "Realismo e símbolo" - o mesmo é dizer vida e poesia - foi o tema que, então, escolhi entre os propostos, aquele que se prendia com o meu próprio rumo na vida e a que desde sempre esteve ligada a minha experiência de leitura.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

«To be oneself ... a supreme, gleaming triumph of infinity»

Se só mais tarde conheci as teorias em torno da "morte do autor", o certo é que foi antes de as conhecer que fiz a aprendizagem de um modo de ler que aquelas vieram consolidar. A sua luz, se me pareceu ofuscante, nem por isso me cegou por completo, na medida em que a fiz desde logo incidir nesta, para mim anterior, experiência de leitura.
Afigura-se-me hoje mais claramente que quem orientou o seminário (diga-se que alheado da teorização francesa)pretendia desenvolver em cada um de nós a percepção da vida em toda a sua complexidade em textos que, em maior ou menor grau, a dariam a ver, ou seja, a trariam "ali", diante de nós - textos em que, como na vida, se tornava indiscernível qualquer marca de autoridade reportável, como tal, ao autor, textos em que, como na vida, os acontecimentos(fossem de que natureza forem,física, psíquica, espiritual) se não esgotavam na interpretação, neste ou naquele sentido que se lhes quisesse ou pudesse "pregar". D.H.Lawrence, fulcral no programa, isto mesmo havia teorizado na Phoenix, a sua obra póstuma,(onde usa mesmo o termo «nail»),ainda que ele próprio tivesse prevaricado e pregado a sua "moral" em textos que, à luz do que defende,são mortos (creio não ser preciso apontar o mais gritante exemplo). Pelo contrário, The Rainbow apresentar-se-ia (indubitavelmente ao orientador do seminário, a quem coube toda a escolha)como texto "realista" por excelência (estou deliberadamente a evitar o termo "romance" de modo a deixar aberto o horizonte). É deste texto que colhi o passo que transcrevo e que me parece a todos os títulos luminosamente vivo, contextualizado na observação ao microscópio dos movimentos de uma amiba:
«Self was a oneness with the infinite. To be oneself was a supreme, gleaming triumph of infinity».

Como este post já vai longo,continuarei num outro.

sábado, 16 de julho de 2011

«assombração» de luz?

No fecho de The Death and Return of theAuthor, S. Burke (1992) vê a "questão do autor" como «uma assombração interminável», «uma presença inquieta que a teoria nem pode explicar, nem exorcizar». Será que a «questão» do autor só se coloca no caso da escrita dita "criativa" (também referida como literária ou poética)?  Em todo o texto, criativo ou não criativo (onde passa a fronteira?), há um sujeito enunciador.  Lícito me é, pois, perguntar se quem, nestes termos, dá mostras de desconforto ante o que chama «assombração», "presença inquieta" (ou inquietante?) a explicar ou exorcizar é o autor Burke ou o sujeito da enunciação deste (seu) texto, que se apresenta como seu autor?
Na escrita criativa, o autor-criador - enquanto "outro" -  é posto entre parêntesis pelo crítico do mesmo modo que o "Outro" o é pelo agnóstico. Por isso me parece haver aqui mais alguma coisa do que levar à prática o fecho do Trataktus (Wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen), ou não haveria azo a se falar de «assombração».

Devo admitir que, quando tal assombração é luminosa, não a conseguindo explicar, nem por isso a desejo exorcizar, antes a desejo convocar. Agrada-me a ficção em que entro no texto como numa casa em que, com a energia (emanada do que é em mim totalidade de corpo, alma e espírito) que lhe dispenso (anjo que lhe envio?), se manifesta a presença que a habita. Uma assombração de luz seria então a dos livros que levaria para a ilha deserta, uma luz que me devolve exponencialmente intensificada essa energia que lhe dou (esta perspectiva faz-me evocar a plantinha de T.T. que, em lugar de consumir os nutrientes da terra, lhos faculta).
Tal é, citando agora H.V., a «luz que emana do espírito que o corpo do livro suporta». Como «corpo», tais livros, continuarei a citar, «precisam de ser tacteados lenta e suavemente, precisam de ser tocados para se abrirem e deixarem ouvir a voz reservada que trazem dentro de si». Ler é, assim, «um corpo a corpo, um jogo em que as peles se tocam para os espíritos se fundirem», uma relação que, «presidida por esse estranho deus a que os gregos deram o nome de eros», reclama a «especial reverência com que um corpo se deve abrir a outro».

Passando da citação à paráfrase, posso dizer que assim me abro - e desejo abrir - a certos livros e assim certos livros se me abrem.  Direi, porém, que, tal como na unio mystica, a fusão dos espíritos não está nas nossas mãos, ainda que plenamente se abram para se darem, não acontecendo sem aquele fogo que torna trina a relação.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

no desejo de uma visão unificadora

Tenho deixado aqui anotações, se é que tal lhes posso chamar, de um esforço de reflexão que se me torna tanto mais penoso quanto tento seguir uma linha, um rumo, chegar a uma visão unificadora. Algo de endémico há que me move a não querer ficar pela divisão - e, se falo em divisão, é porque pressinto uma inteiridade (um termo para wholeness) em que se (re)liga o que pensamos distinto  (ou como tal o queremos pensar). 
Importa-me convocar aqui  os planos da vida e do texto - não da vida em abstracto, mas da vida de cada um, na sua singularidade irrepetível (quer viva ainda, quer tenha morrido); não do texto em abstracto, mas deste ou daquele texto concreto - e, com esses planos, os do autor e do sujeito da enunciação, do destinatário e do enunciatário (directo ou oblíquo).
A perspectiva unificadora que entrevejo é a que dá a ver a vida como viagem em que se interligam os planos da vida e da escrita e esta surge, não como um mero modo de verbalização/expressão, mas como possibilidade que se oferece ao pensar (inseparável do sentir, portanto melhor seria dizer ao "eu" ou à "consciência") de se lhe substituir, facultando-lhe a abertura necessária à (re)ligação ao que o move e direcciona.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

«retende o que for bom»

«Examinai tudo e retende o que for bom» (1 Tes 5: 21). Tenho perseverado na oração da manhã em que, como disse já, a ligação, se acontece, é tão subtil que só chega a aflorar a pele no momento em que, pedindo-a, me é dada uma palavra de luz.  Hoje surgiu esta, que não tinha ideia de já ter lido, em que, afinal, S. Paulo recomenda um procedimento que tenho procurado adoptar, muito especialmente quando se trata de crenças e de práticas ligadas a esta ou àquela religião (ou a todas e a nenhuma em particular, como parece ser cada vez mais o caso). Examino tudo o que vejo - o que "está aí" - e deixo a arqueologia para os entendidos, lamentando que, tudo examinando, sejam muitos os que, contrariamente à recomendação em epígrafe, retêm apenas o que for mau. 
Deixo de incriminar as religiões no momento em que retiver, na sua história (e isto que digo não implica que a desconheça), o que se me apresenta de bom, de muito bom, havendo-o em todas elas. Falando daquela em que tenho todas as minhas referências, vejo o facho-testemunho, miraculosamente aceso, não obstante as vicissitudes de toda a ordem sofridas e vencidas ao longo dos tempos por aqueles que, «de mãos limpas e coração puro» o receberam e o passaram a outro,  até, de mão em mão, chegar aos tempos de hoje. Se examinar o que me é dado aperceber das outras religiões e retiver o que for bom, mais viva verei brilhar a sua luz.

terça-feira, 12 de julho de 2011

anjos e avatares

Ante a hipótese de que a destinatária das Centúrias fosse, como se supõe, Susanna Hopton, procurei encontrar nas suas Meditações e Devoções, se não alusões e referências, pelo menos retomas deste ou daquele motivo ou tema, desta ou daquela palavra de que Thomas Traherne faz um uso peculiar e que nos chama a atenção seja pela singularidade, seja pela frequência de ocorrência. Nada encontrei que me fizesse pensar que ele - ou o seu livro - tenha sido para ela especial assim o deixando perceber. O que S.H. escreve nunca poderia ser tomado como a continuação (nas páginas deixadas em branco) do livro que ele devolve, escrito, àquela que lho ofereceu e a quem o dedica na quadra introdutória. Poder-se-ia mesmo dizer que, se é a destinatária deste livro, não só não nos dá quaisquer mostras de agrado, como completamente o ignora. Na verdade, o pouco que se sabe ter dito a  respeito de T.T. não lhe é muito abonatório, nomeadamente apontando que falava demais, sem ter consciência de se tornar cansativo para o interlocutor desprevenido de quem se apoderasse. 

Talvez importe pouco que tenha existido na vida dita real aquela que inquestionavelmente existe na escrita de Traherne dela fazendo parte integrante. Muito do encanto e singularidade do seu registo, como o apontam alguns, advém-lhe do facto de ser dirigida, não ao público em geral, mas a alguém em particular, alguém que lhe merece um imenso apreço, se não mesmo - ou também -  o mais puro e profundo amor. O âmbito da palavra «love» na língua inglesa é de tal maneira alargado que pode ser usada para todo o modo de afeição, sendo por isso elevadíssima a frequência com que T.T. dela faz uso. Que possa expressá-la deixando indecidível a sua natureza só pode ser uma coisa muito feliz. 

Estas considerações levam-me de volta aos anjos enviados quando se pensa escrevendo, subsistindo a escrita e, com ela, tais anjos. Gostei do filme Avatar (abstraindo da fórmula exausta do enredo) muito especialmente por me parecer ver encenada, na sua beleza, a realidade da escrita. Ao ler as Centúrias não encontro T.T. e a sua destinatária, mas o que poderia olhar como os seus "avatares", porém da natureza dos anjos e num mundo onde estes não sabem bem  (convoco Rilke, claro) se se movem entre os que vivem ainda ou entre os que já morreram. Chamar-lhes sujeito da enunciação e enunciatária é não querer ver, sob a opacidade destes termos, a sua prodigiosa e proveitosa realidade.  


sexta-feira, 8 de julho de 2011

No me mueve, mi Dios (Soneto a Cristo crucificado)



Retomei a oração da manhã e, se me parece não conseguir "ligação", o certo é que, subtilíssima, ela acontece, tão subtil que apenas penso que a pressinto. É por isso que continuo a tentar "ligar", na absoluta certeza de que Lhe é grato que O faça e Lhe fale, por horas a fio que seja - e quem me dera que o fosse; na verdade, nesta aridez e por incapacidade minha, apenas passam uns escassos minutos. Um outro tempo houve em que era mesmo por horas a fio que estas coisas me tomavam, tempos em que,  nada me faltando, tal não podia ser entendido - sobretudo por mim mesma - como uma forma de compensação, antes como o coroar, o cumular de um sentido de plenitude, física, psíquica, espiritual, nunca antes experienciado e agora tão distante.
Este soneto (considerado desconhecido o seu autor, se bem que atribuído também seja a Teresa d' Ávila, seja a João da Cruz), de que tantas vezes fiz oração, reacende, se o "rezar", uma chama que julgava extinta:
 
No me mueve, mi Dios, para quererte
el cielo que me tienes prometido,
ni me mueve el infierno tan temido
para dejar por eso de ofenderte.


Tú me mueves, Señor, muéveme el verte
clavado en una cruz y escarnecido,
muéveme ver tu cuerpo tan herido,
muévenme tus afrentas y tu muerte.


Muéveme, en fin, tu amor, y en tal manera,
que aunque no hubiera cielo, yo te amara,
y aunque no hubiera infierno, te temiera.


No me tienes que dar porque te quiera,
pues aunque lo que espero no esperara,
lo mismo que te quiero te quisiera.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

no espírito da mulher da dracma perdida

Aqueles que almejam assumir uma perspectiva transversal a todas as religiões, encontram-na na que vê a vida como um trajecto em demanda da Sabedoria. Salutar é o facto de cada um o entender de acordo com o sentido que  construir - ou que vir emergir - ao longo desse percurso. T.T. prefere chamar-Lhe Felicidade (Felicity) e vê-se como um lago («pool») que tem primeiro de se encher para depois transbordar. 
O que tenho, porém, constatado é que a maior parte dos que escrevem sobre a felicidade apenas falam em como encher o lago, deixando subentender que já o tenham cheio. Se esta é a forma de o deixarem extravasar, bem me parece que a tanto o forçam, enchendo-o de muitas coisas que estão longe de ser a desejada água. O espírito mais deveria ser o da mulher da parábola que encontra a dracma perdida e chama as amigas para que se alegrem com ela. Diria ser neste espírito que Traherne escreve. Colocarei no outro blogue (há tanto tempo que lá não ponho nada) um passo das Centúrias em que não só isto me parece estar muito claro, mas que também me propicia aquela experiência de, não alcançando a compreensão, ser todavia movida por ela no entendimento que busco para o que me impede de ver a via com a limpidez que desejo.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

os livros que se lêem «muito bem» e os que se põem de lado

Há livros que, por qualquer razão, adquirimos, mas que, lidas as primeiras páginas, pomos de lado e não lemos mais. Outros há que nos despertam algum interesse e lemos até ao fim, mas depois arrumamo-los na prateleira para lhes não pegarmos mais, esgotáveis que são à primeira leitura. Ainda há aqueles de que lemos umas páginas, aqui e ali, e ficam à mão para os retomarmos mais tarde. Finalmente há os especiais, os que levariamos para a ilha deserta onde houvessemos de passar o resto dos nossos dias, na certeza de que nunca chegariamos ao fundo do seu essencial mistério. Estes, nunca os pomos de parte, de algum modo passam a fazer parte de nós.
Derrida disse numa entrevista que não foram muitos os livros que leu (não vou discutir o valor de verdade da proposição), mas que os que leu, leu-os «muito bem» . O que é «ler muito bem» um livro?  Diria que é reconhecê-lo como especial e, como tal, olhar o seu intrínseco mistério, fruir, no espanto (wonder), a sua inexauribilidade, é sentir na pele o toque inconfundível da compreensão, em si mesma inalcançável.

Será que podemos extrapolar dos livros para as pessoas? Posso, na verdade, olhar o "outro" como um livro que me motiva - ou não - à sua leitura, havendo, entre «ler bem» e não ler, todo um vasto leque de possibilidades. Quando, por sinais vários, o "outro" se me manifesta como "especial", logo deixa de ser uma mera instância da "alteridade" abstracta, para se tornar o "tu" de uma relação que surge por via daquele mistério que, se a faz surgir, também dela advém. É ainda Derrida que me propicia este olhar no subtítulo de Béliers (de que já aqui falei por ver nele substanciado o tema da "tríade" que tem centrado estas minhas digressões). «Ler bem» não é chegar ao fundo do que não o tem (não há fundo para o que é infinito).

Tudo isto parece límpido e a vida, encarada nesta perspectiva, torna-se uma viagem iniciática  no mistério de si mesma. Tomando como seu rumo e destino o aperfeiçoamento próprio, tudo passa a ser visto como inerente à aprendizagem. Que dizer, então, quando se não é para o "outro" um livro especial, antes um daqueles que se esgotam na primeira leitura ou daqueles de que se lêem as primeiras páginas e, não suscitando interesse, se remetem para o sótão, à falta de espaço nas estantes reservadas aos que se privilegiam?

sábado, 2 de julho de 2011

«Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração»

A Igreja celebra hoje o «Imaculado Coração de Maria». Do Evangelho do Dia tomei o versículo em epígrafe (Luc 2,51) como tema de reflexão. Ao testemunho de Maria se deve o que o evangelista reporta aos primeiros anos de Jesus, nomeadamente, no versículo seguinte, que «crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens».
Tal é o que uma mãe mais pode desejar para o seu filho. A beleza vem por acréscimo ou não fosse a verdadeira beleza a que a graça manifesta, não havendo quem lhe não seja sensível. Estou convicta de que mesmo os que se dizem ateus (reitero a minha convicção de que quem como tal se afirma apenas nega a sua crença no deus que atribui aos outros)a sentem naquele em quem ela brilha. Diria ser ela que Antero descreve nestes versos, relativamente à «visão» do «sonho todo feito de incerteza»: «era outra luz, era outra suavidade, que até nem sei se as há na natureza».

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Junho, o mês do Sagrado Coração de Jesus

Porque  hoje a Igreja celebra a festa do Sagrado Coração de Jesus.


Prayer to the Sacred Heart